naquela noite a energia elétrica foi embora junto com a luz do dia. Os habitantes do pequeno distrito de Borba, a poucas dezenas de quilômetros de Mariana, que já não desfrutavam de nenhum privilégio tecnológico, se viram completamente ilhados e privados de comunicação. Pouco ou nada sabiam o que estava acontecendo. Mistura de falta de informação com incredulidade. A madrugada formaria uma cicatriz ainda não cicatrizada no vilarejo, particularmente mais intensa em Vanuza, diretora de uma escola da região.

“Algumas pessoas estavam falando que a barragem tinha estourado, que poderia acontecer alguma coisa. Eu não achei que fosse nada, não acreditei nas pessoas. Meus meninos foram até assistir à passagem da lama achando que era só uma aguinha. Quando vi que a luz acabou e o telefone parou, fiquei assustada”, conta Vanuza em sua casa num fim de semana calorento de agosto, rodeada por alguns de seus vinte e quatro vira-latas, um deles salvo pelo filho da “aguinha”, o mar de rejeitos que despencou da barragem do Fundão. O animal estava completamente enlameado e preso nos cipós do rio.

Depois que a energia foi embora, tudo o que restava para Vanuza e seus filhos eram os telefones celulares. Apesar de estarem funcionando, as baterias não sobreviveriam mais que uma noite. Enquanto os aparelhos ainda respondiam, ligou para vizinhos e amigos a fim de entender melhor o que estava acontecendo. Foi informada que a lama que despencou da barragem havia destruído completamente o povoado de Bento Rodrigues.

“Ninguém tinha noção das proporções que isso estava tomando. Ninguém avisou a gente, ficamos sabendo pelos vizinhos. Se isso tivesse acontecido de madrugada, todo mundo tinha morrido. Ficamos sem telefone e sem televisão para nos informarmos.”, disse Vanuza.

Apesar do desespero e do clamor pelos habitantes de Bento, como a cidade é conhecida, outras duas informações preocuparam a diretora.  As pontes que ligavam Borba aos distritos mais próximos foram levadas pelo mar de rejeitos. Estavam completamente isolados, sem informação e sem locomoção. Ainda mais preocupante era a condição de alguns moradores do distrito. Num lapso de sanidade em meio ao furacão de flagelo, Vanuza lembrou dos vizinhos diabéticos que logo ficariam  sem insulina – e sem acesso a qualquer posto de saúde -, algo que colocava suas vidas em risco.

Com o resto de bateria que ainda tinha, combinou com alguns moradores de tentar ir a Mariana para buscar ajuda e remédios. No sábado, um dia após o rompimento da barragem do Fundão e ainda longe do alcance de qualquer autoridade, se reuniu com moradores e caminhou morro acima até rodovia Luis Martins Soares, que beira o distrito de Furquim, povoado com pouco mais de 1.600 habitantes.

A diretora da escola municipal de Campinas, Vanuza Cerceau, e alguns de seus 24 vira-latas. Foto: Alex Tajra

Chegando na estrada que ligava os pequenos povoados a Mariana, Vanuza conseguiu pegar uma carona e chegar na cidade histórica, que já estava com uma movimentação. No meio da confusão conseguiu encontrar uma médica voluntária que se dispôs a ir até Borba. Comprou os remédios para os diabéticos e voltou para casa no carro da própria médica. “Dei muita sorte, se não conseguisse aquelas pessoas poderiam morrer”, disse Vanuza detalhando cada movimento seu no dia da lama.

Altura média, cabelos com mechas loiras presos num rabo de cavalo, Vanuza  Aparecida Cerceau sofreu ainda mais nos dias posteriores para ajudar seus vizinhos. Diretora da escola municipal do pequeno distrito de Campinas há quatro anos, antes professora do ensino fundamental na mesma instituição, Vanuza viu todos os seus alunos ficarem sem aula durante mais de vinte dias. Por causa da queda de todas as pontes que ligavam as comunidades, o ônibus escolar não conseguia passar para pegar as crianças. Pior, viu tudo isso acontecer em meio ao período de provas finais, ou seja, seus alunos corriam sério risco de perder todo o ano letivo em função do rompimento da barragem.

“A Samarco tentou reconstruir essas pontes várias vezes. Eles construíam, vinha a chuva e levava tudo embora. Isso aconteceu umas três vezes, e afetava as crianças. Tive que ir lá e reclamar com eles. Exigi que eles dessem um jeito de levar as crianças para a escola, que elas não podiam perder o ano inteiro por algo que não era culpa delas. Aí eles contrataram umas vans pra tentar ajudar”, contou.

A professora acompanhou todas os carros financiados pela Samarco que saíam das comunidades para a escola. Apesar do esforço dos pais e dos professores, o fim do ano letivo, mesmo com a realização dos testes, acabou prejudicado, já que não podiam ficar muito tempo na escola por causa da logística apertada. Os alunos iam, faziam a prova e voltavam para suas casas.

O aluguel dos carros foi uma das poucas coisas que a mineradora fez para tentar diminuir os danos causados pela barragem. Assim como Dorinha e Bilú, também atingidos pela lama do Fundão, Vanuza conta que as cestas básicas (financiadas pela Samarco) só foram distribuídas por dois meses, juntamente com a ração para os animais que cria em casa. “Só apareceram aqui em dezembro e janeiro. Desde então não me entregaram mais nada.” É uma reclamação constante de todos os moradores das comunidades atingidas, que invariavelmente precisam se deslocar para postular direitos numa clara inversão de papeis.

No fim de nossa conversa, a diretora citou um ponto importante que envolve toda a discussão sobre as barragens de rejeitos de minério “Sou filha de um operário da Vale, meu pai trabalhou lá por décadas. Dois irmãos meus trabalham na Vale atualmente. Mariana criou uma dependência, está viciada na mineração”.

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens escrito em 2016 sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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