já passava da uma da manhã quando o telefone de dona Odete tocou. Uma amiga enviara uma mensagem pelo Whatsapp.  “Caiu a barragem do Fundão, mas pode ficar tranquila que não é nada”, dizia. Desconfiada, saiu à rua e foi perguntar para outras pessoas o que estava acontecendo, logo apaziguada por outros moradores. “Foi nada não, vai vir no máximo uns 40 centímetros de água”, falou um morador. Não acreditou e ficou plantada por mais de dez horas na janela de sua cozinha, com vista para o rio Gualaxo do Norte, curso de água que corta a cidade de Barra Longa, a cerca de oitenta quilômetros de Mariana.

Veria aquela imensidão de água se transformar em uma locomotiva de rejeitos de minério, destruindo tudo que via pela frente. “Logo quando abri a janela, quase de madrugada já, senti um cheiro muito forte de esgoto. Nunca tinha sentido algo parecido. O barulho também era absurdo, nunca tinha visto nada igual. Parecia uma tempestade vindo, um tsunami. Fiquei monitorando a madrugada inteira”, me disse Odete, sentada em um charmoso sofá de sua casa numa tarde iluminada de setembro.

Moradora do pequeno distrito há mais de cinco décadas e criada na zona rural, cabelos curtos encaracolados e olhos azul-céu, Odete Cassiano Martins teve de arcar com uma complexa tarefa: esconder tudo que estava acontecendo de seus pais. O casal de 88 anos vivia com ela na casa e dormia enquanto a lama invadia a cidade. “Fingi que nada tinha acontecido. Eles acordaram e perguntaram do cheiro, falei que tinha sido um esgoto que estourou. Meu pai iria entrar em desespero, podia passar mal.”

No mesmo dia, um após a queda da barragem, Odete levou seus pais para um sítio afastado da cidade ficou com eles lá por uma semana, esperando a situação ser remediada. Voltou para casa e percebeu que nada havia sido feito, e seus pais logo ficaram sabendo do desastre de responsabilidade da mineradora Samarco,  empresa que administrava a barragem do Fundão. O que a aposentada previa se consumou, e a situação da cidade transformou seus pais, que entraram em uma forte depressão.

“Meu pai começou a ficar muito irritado com tudo, a poeira, os caminhões descendo pra cima e pra baixo, um monte de gente que ninguém conhecia andando de um lado para o outro. O povo daqui não tá acostumado com isso. Eles se assustaram” contou. “Ele ficou desnorteado, saía para a rua e se perdia, não sabia onde queria ir. As pessoas me ligavam falando ‘Odete, seu pai tá aqui embaixo perdido, precisa vir buscá-lo’”.

Conforme a situação se agravava na região, o desespero dos pais de Odete se intensificava. Não conseguiam absorver tudo aquilo. Além da total falta de perspectiva do pai, ela viu a mãe ficar violenta, algo que nunca tinha acontecido. “Ela começava a chorar e me bater. Nunca fez isso na vida, me batia com a bengala”, disse, com os olhos embargados. Sem poder deixar os pais sozinhos, já que todos os seus irmãos moram fora de Minas Gerais, Odete aguentou dois meses com os pais em casa até um amigo vir para Barra Longa ajudá-la. Levou-os de volta para a roça, onde vivem até hoje.

O tempo com os pais em casa coincidiu com o primeiro embate de Odete com a Samarco. A mineradora, contou, contratara psicólogos para “ajudar” as pessoas a superarem traumas e outras questões. Quando foi conversar com um deles, se indignou com as sugestões que julgava absurdas. “Contei do problema dos meus pais e eles [profissionais contratados pela empresa] mandaram eu interná-los em uma casa de repouso. Mandaram eu colocar eles num asilo. Contei que meus irmãos moravam fora, em São Paulo, e que estava cuidando deles sozinha. Eles falaram pra eu me mudar por um tempo, ir pra São Paulo, ficar uns meses lá até a coisa abaixar”.

Depois de dezenas de reuniões e assembleias, os moradores de Barra Longa conseguiram fazer com que a mineradora dispensasse os psicólogos e contratasse profissionais indicados pela própria comunidade. À época, várias famílias de Barra Longa relataram a mesma história à reportagem da Saci: os médicos e psicólogos contratados estavam mais empenhados em atender aos interesses da empresa do que ajudar a população atingida.

Odete enxergou no Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) um refúgio para suas aflições. Aderiu ao grupo dois meses depois da queda do Fundão, influenciada por amigos da comunidade que a viam como uma mulher de luta. “Quando eu ia lá no QG [quartel general] da Samarco chorando, gritando, eles me tratavam bem, tentavam me acalmar. Depois, quando comecei a fazer parte do MAB e ir lá reivindicar meus direitos sem chorar, com voz firme e séria, eles se entreolhavam como quem diz ‘lá vem aquela mulher de novo'”.

Após idas a vindas à sede da mineradora na cidade, a aposentada conquistou uma vaga no cadastro de cartões da Samarco, estes carregados mensalmente com o valor respectivo a um salário mínimo e uma cesta básica. Os que não conseguiam este cartão tinham de entrar com uma ação junto ao Ministério Público para adquirir o benefício.

Odete argumenta que o destrato da mineradora com sua família está relacionado à posição estratégica da sua casa, uma das poucas que tem o quintal na beira do rio Gualaxo do Norte. A propriedade é crucial para as operações da Samarco, que retirava a lama dos quintais e a depositava em outros locais. Isso colocava a aposentada em uma árdua negociação com a mineradora, que queria colocar seus imensos tratores no quintal da aposentada.

A Samarco enviou emissários em vários momentos para negociar a entrada das máquinas no terreno de Odete. Em um primeiro momento, uma funcionária da Herkenhoff & Prates, consultoria terceirizada pela Samarco, tentou convencê-la da entrada da mineradora no quintal da casa oferecendo uma total reparação de sua horta – abacate, manga, abiu, figo, graviola, laranja-abacaxi, além de um grande pomar de tomate-cereja.

Odete negociou e a consultora da HP prometeu levar seus pedidos para a Samarco.  Desconfiada da proposta, foi à sede da empresa pouco depois de selar o acordo. “Queria que eles colocassem aquilo em um papel, carimbassem e fizessem tudo de forma oficial. Queria aquilo documentado, na minha mão”, contou. “Quando cheguei lá, contei da proposta e exigi tudo no papel, o cara da Samarco fez uma cara estranha e saiu para ‘ligar para um outro funcionário’. Eu fiquei reparando nele e vi que ele ligou para a menina da HP, mentiu na minha cara.” A funcionária terceirizada então foi até a sede e disse que tentaria resolver aquilo no dia seguinte.

Logo ao amanhecer Odete se deparou com várias máquinas da Samarco e suas terceirizadas próximas ao seu quintal. “Cheguei nos funcionários que estavam lá e perguntei ‘cadê meu material’? Eles responderam que ‘só estavam limpando um pouquinho, que só faltava o quintal dela, todo o resto já estava limpo’. ‘Aqui vocês não vão entrar mesmo’, falei pra eles. Foi acabando o dia eles foram tirando as máquinas, devagarinho”, disse com ar de vitória.

Pouco tempo depois ela recebeu mais uma visita, dessa vez de um funcionário da própria Samarco e um da Agroflor, terceirizada responsável pela restauração das hortas e dos cultivos dos atingidos pela barragem. Os dois disseram que queriam saber detalhes da horta que existia antes da lama. Quando chegaram ao quintal de Odete, veio à tona o real motivo da visita, e o funcionário da Samarco começou a tentar persuadi-la a liberar o espaço para a empresa. “Não vou facilitar nada para a Samarco porque a Samarco não facilita nada pra ninguém. Vocês não vão entrar no meu quintal”.

O funcionário da mineradora desistiu por um tempo, deixou o outro homem conversando com Odete e ligou para a Samarco. “Estava com um olho aqui e outro ali. O cara falava comigo e eu só prestando atenção na conversa do outro no telefone. ‘Ela está irredutível, não vai liberar’, ele falava. Desligou o telefone e tentou convencê-la mais uma vez. Ofereceu a construção de um muro no quintal, além de um galinheiro para ajudar na renda da aposentada. “Um dia é da caça e outro do caçador. Quando eu fui lá pra buscar o que é meu, vocês não quiseram. Agora vocês tão tentando me comprar? Não tem negociação. Isso só é bom para a Samarco, e eu quero o que é bom pra mim.”

A pressão continou. O funcionário da mineradora ligou novamente para a sede, reforçando a posição de Odete. Enquanto isso o homem da Agroflor tentava barganhar. “Ele falava que ia fazer tudo o que eu queria, galinheiro, horta. Falou até que ia deixar melhor que estava antes, com mais coisas que eu nem tinha. Respondi que eles podem fazer o que quiserem, desde que seja da minha cerca pra lá”. Depois de uma série de tentativas de persuasão, Odete não aguentou mais e pediu para os homens se retirarem.

“Não deu nem quinze minutos o meu agente de saúde, que mora aqui na minha rua, apareceu na minha porta. ‘Esqueci de falar, tem um médico marcado pra senhora hoje, daqui a pouco.’ Mentira pura, mas fui lá pra ver o que acontecia. Cheguei lá era o Dr. Leonardo, médico contratado pela Samarco por indicação dos atingidos”. A psicóloga Laura, na mesma situação do médico, também estava presente.

“Que foi, doutor?”, disse Odete chegando ao posto de saúde. “Olha dona Odete, a senhora tá muito nervosa, tá ficando muito brava”, disse o médico. Odete se incomodou com o tom e começou a gritar e chorar de raiva. Se acalmou e pegou a receita que o doutor estipulara. O médico havia requisitado que ela dobrasse o número de gotas de Rivotril que estava tomando, além de também dobrar o uso de Venlafaxina, um fortíssimo antidepressivo. Quando conversávamos, Odete fez questão de salientar que utilizava os remédios controlados antes da queda da barragem. A aposentada achou tudo mais estranho quando o médico estendeu a mão e a entregou uma caixa do antidepressivo sem custos , segundo ela algo inédito, posto que o remédio custa entre R$110,00 e R$ 140,00.

“Eles estão querendo o que com isso? Tão querendo me dopar  pra entrar no meu quintal. Sabe o que eu fiz com a receita? Rasguei e joguei no lixo. Isso é estratégia” Perguntei se ela desconfia do médico. “Sinceramente, sim. Foi coincidência demais da conta”. As divergências com a Samarco também envolvem os longos, e subjetivos, questionários feitos pela empresa, que supostamente visam mensurar as perdas dos moradores. A pesquisa é feita de questões que abordam da materialidade do que foi destruído à intimidade dos atingidos. “Quantos peixes você pescou no último verão?” ou “Quantas vezes você teve relações sexuais no último mês?”.

Foram cinco até agora, e a aposentada já recebeu uma ligação para fazer o sexto. “Eles falaram que é o último, é o cadastro final, o que vale. Não respondi e nem vou responder”, disse Odete, relatando que foi orientada pelo MAB a não responder nada que lhe deixe desconfortável. “Eles ameaçam, falam que muitas pessoas já fizeram esse cadastro, o que é mentira. Falaram que se eu não fizesse não teria indenização, que não poderia participar dos cursos [de capacitação, realizado pela ONG Cervas], me senti ameaçada”.

Um dos argumentos utilizados pela mineradora para pressionar os atingidos a responder as perguntas era de que o próprio Ministério Público Federal estava por trás do questionário. Na reunião que assisti dias antes da conversa com Odete, o procurador da República Edmundo Antonio Dias, questionado sobre as ligações recebidas pelos moradores, afirmou que não houve nenhum contato da empresa e o MPF não está por trás deste questionário. “Isso é uma mentira, não houve qualquer participação do Ministério Público nisso. Não respondam esse questionário”, disse.

“Já falei pros meus pais, já avisei todo mundo. Se um dia eu desaparecer, se um dia me acharem no rio morta, pode ter certeza que tem a ver com isso. Olha o que fizeram com a Nicinha”, me diz a aposentada, em referência à Nilce de Souza Magalhães, militante do MAB em Rondônia assassinada em janeiro de 2016. Seu corpo só foi achado no fim de junho do mesmo ano, no lago da barragem da Usina Hidrelétrica Jirau, em Porto Velho.

Nicinha lutava pelos direitos dos atingidos desta mesma barragem, construída pelo consórcio Energia Sustentável do Brasil (ESBR). A empresa é subsidiária da Mitsui & CO, conglomerado japonês investigado na Operação Lava Jato e com participação em dezenas de empresas, incluindo a Vale. Um homem foi preso depois de confessar o assassinato, mas fugiu da penitenciária.

Meses antes de conversar com Saci, Odete recebeu jornalistas do México e do Chile interessados na destruição provocada pela lama em Barra Longa. “Fiquei umas quatro horas com o mexicano, levando ele pra cima a pra baixo, mostrando tudo. Meu celular não parava de tocar enquanto eu estava com ele, então eu desliguei. Quando cheguei em casa, recebi de novo a mesma ligação e atendi. Uma voz masculina do outro lado da linha falou ‘Você tá falando com muita gente, toma cuidado pra não perder seu cartão’. Desliguei na cara dele”.

 

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens escrito em 2016 sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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