orelógio no semáforo mostra os poucos minutos que faltam para as onze da noite. O ônibus, ao contrário dos dias comuns – quando oferece uma última oportunidade aos estudantes, seguranças, enfermeiras e vendedores ambulantes de chegarem em casa antes do início do dia seguinte – está quase vazio. Rompem sua solidão duas mulheres que, apesar de juntas, preferem o silêncio, um homem com o crachá da empresa pendurado na camisa já suja, um rapaz imerso em um filme no celular e um diálogo improvisado entre o cobrador e o motorista.

Nada muda durante o trajeto ao longo da descida da Avenida Sumaré: as paradas estão vazias, os relógios públicos vão aumentando, em sincronia, a contagem do tempo, e o vento mais frio do dia insiste em entrar pelas poucas janelas abertas. O cobrador, que aparenta estar na fronteira da aposentadoria, faz algum esforço para argumentar porque Emerson Sheik é melhor do que Dudu, mas a conversa com o motorista logo abandona sua espontaneidade e volta a ser o que dela se esperava: uma espécie de comemoração à prisão de Lula. A palavra “safado” ecoa no salão do ônibus até sua abrupta parada para a entrada de um homem com a touca da blusa grosseiramente amarrada sobre o boné.

A escuridão parcial dentro do veículo impede qualquer contato entre ele e os antigos passageiros. Suas pequenas solidões, porém, são interrompidas na parada seguinte, já quase na Barra Funda, quando o homem salta a catraca com um único impulso, puxa uma pistola do agasalho e pede calmamente que todos entreguem seus celulares e carteiras. As moças da frente, incrivelmente impassíveis, iniciam um ritual mecânico de desconectar os fones de ouvido dos quase perdidos aparelhos.

O homem do crachá, ao contrário, parece ainda não ter entendido a situação – algo comum aos primeiros segundos de um assalto. Então, antes de continuar o plano, o rapaz olha para trás e, de costas para as vítimas – já rendidas com aquela ruptura do cotidiano, da solidão das onze da noite, da conversa do cobrador com o motorista e da precária segurança que ainda existe nos ônibus de São Paulo –, abaixa a arma até quase não poder segurá-la.

A situação permanece indecifrável até o momento em que se percebe que o cobrador experimenta uma espécie de choro que não parece ser de medo. Ao contrário, há um olhar estranho que a violência das rodas do ônibus sobre os buracos da avenida só deixa ver em rápidas estabilidades intercaladas. Sua boca treme paralela ao resto do rosto. E antes que se perceba o avançar das onze horas no relógio da rua, uma última frase também ecoa nos nossos ouvidos:

“Não sabia que você trabalhava nessa linha, pai”.

Vinícius Mendes é jornalista e cientista social. Passou pelas redações da Band e da Revista Brasileiros. Escreve para a BBC Brasil e para a Calle2.

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