quatro horas da madrugada e nada. Érica, grávida de cinco meses, decidiu sair à rua em busca do marido, que havia deixado a casa no começo da noite para auxiliar a irmã. Conferiu tudo rápido e saiu, levando consigo um ar de desespero. Andou algumas quadras e o encontrou com um grupo de homens, retirando móveis e outras parafernálias da casa da cunhada, já tomada pela lama. Passou a ajudá-lo e a madrugada virou um novo dia, em que continuaram pelas ruas tentando remediar a situação e ajudando pessoas que pareciam as mais prejudicadas.

“Quem foi dormir, dormiu com uma paisagem e acordou com outra totalmente diferente”, me contou Edmilson, sentando o corpo miúdo num grande sofá de sua casa, sobre a queda da barragem do Fundão em Bento Rodrigues, que atingiu também sua cidade, Barra Longa. Ele ainda revelou alguns sopros de sorte em meio à aterrorizante descida da lama. “Tenho alguns amigos que trabalham com garimpo, eles viram tudo o que aconteceu antes de muita gente e me ligaram. Quando comecei a falar com eles já vi que era alguma coisa muito grave e me preparei”, disse Edmilson, um dos poucos que, na época, me relataram certa consciência sobre o potencial destrutivo da barragem.

No dia da enxurrada, o casal saiu com lanternas e ficou iluminando o rio para tentar entender o que estava acontecendo. “Um cheiro absurdo de esgoto, muito nojento, nunca tinha visto, sentido e ouvido nada parecido. O barulho era ensurdecedor”, disse Érica sentada ao lado do marido.

A irmã de Edmilson foi uma dos muitos moradores da região que não acreditaram nas consequências da queda da barragem. Quando ficou sabendo do estouro do Fundão, a primeira coisa que seu irmão fez foi ir até a casa dela, que morava próxima ao rio Gualaxo do Norte, afluente do Rio Doce engolida pelo mar de rejeitos. Outra tacada que acabou revelando sorte: Edmilson vivia naquela casa até um ano antes da queda. “Era pra gente estar lá, conseguimos escapar dessa”, disse, olhando para a esposa com um ar de conforto. Para a família, construiu um sobrado em um ponto mais alto da mesma rua, e alugou sua antiga casa para a irmã. “Ela não acreditava, não queria sair de casa. Só depois que ela viu a lama chegando é que saiu fora”, contou.

Toda essa desconfiança por parte dos moradores se deu em razão das frequentes enchentes que acontecem na região. Na época das chuvas, a quantidade de água é tão grande que faz o rio transbordar. “Aqui tem realmente muita enchente, muita mesmo. Quando vem a água, dá uma alagada, mas depois desce tudo, vai embora. Por isso eu sabia que não tinha a ver com a chuva, que tudo aquilo não era por causa de enchente”, lembra Edmilson.

Nascido e criado em Barra Longa, Edmilson Felipe da Silva, de corpo magro e aparência viçosa, começou a ter problemas com a lama logo nos primeiros dias após a queda da barragem. Como mestre de obras, trabalhava junto com uma equipe de 14 pessoas na reforma e construção de boa parte dos empreendimentos da cidade mineira, que na época passava por uma série de restaurações e obras públicas de infraestrutura.

“Tava trabalhando em três lugares, reformando, construindo. Um deles era a pizzaria do Fernandão, lá na praça principal, mas os três foram levados pela lama”, relata. Depois da destruição da cidade Edmilson ficou mais de três meses sem conseguir emprego. A Samarco, em seu plano para reconstruir as cidades atingidas, não levou em consideração a mão de obra local. Edmilson, como centenas de trabalhadores de Barra Longa, não possuía carteira de trabalho assinada e acabou preterido pela mão de obra vinda de cidades próximas. Sua cidade, que antes era fonte de emprego e renda, se transformou num canteiro de obras de desconhecidos, e sem prazo para acabar.

A quantidade de pessoas estranhas aos olhos dos barra-longuenses gerou neles incerteza e insegurança. Boa parte dos funcionários da mineradora, e de suas terceirizadas, vinha de cidades maiores, como Mariana, Viçosa e Ouro Preto, e para os moradores de Barra Longa, distrito rural com pouco mais de sete mil habitantes, isso configurava certa ameaça. “As minhas filhas, às vezes, quando eu não podia levar, desciam a rua sozinhas para pegar o ônibus pra escola. Agora, depois que tudo isso aconteceu, não tenho mais coragem de fazer isso”, me disse Érica.

Professora de matemática na escola municipal de Acaiaca, pequena cidade com pouco menos de quatro mil habitantes, Érica Cristina da Silva sentiu um misto de depressão e revolta nos primeiros dias após o rompimento da barragem. “A ponte caiu na sexta feira, e já na segunda conseguiram remendá-la pras crianças poderem ir à escola. Quando eu chegava lá, passava a ponte e via toda aquela destruição, me dava muita tristeza. Vontade de chorar o dia inteiro.”, contou cabisbaixa.

Edmilson e Érica perceberiam logo depois do nascimento da filha, agora com pouco mais de dois anos, que os problemas de falta de emprego e depressão eram secundários perto do que estava por vir. No começo de 2016, com a lama já seca e assentada pelos caminhões da Samarco, a filha do meio, Marissa, começou a ter problemas respiratórios e tossia muito. Depois de leválem-na algumas vezes ao precário hospital de Barra Longa e não haver melhora, foi à uma pediatra particular de confiança na cidade de Ponte Nova, cerca de 40 km de distância.

A menina então começou a ser tratada com antibióticos. Reclamava muito da garganta e do congestionamento do catarro. Os remédios não surtiram efeito e Érica ficou ainda mais desesperada quando as outras filhas mais novas, Nayane e Alanis, esta recém-nascida, começaram a demonstrar sinais de alergia. “A bebê não dormia, ficava chorando a noite inteira por causa da tosse. Tinha que ficar balançando ela e tentando fazer ela dormir de pé, por que se deitasse ela começava a tossir”, contou.

Depois do surto de alergia na casa de Edmilson e Érica, os dois passaram a viver em função de antibióticos, inalações e injeções. Por serem mais resistentes, as duas meninas mais velhas conseguiam se acalmar e tomar os remédios. A recém-nascida Alanis, porém, sofreu muito com as alergias. Em seus cinco meses de vida foi pelo menos seis vezes à pediatra. Como ardia em febre e as enfermeiras não conseguiam achar as veias em seus pequenos braços, teve de tomar mais de uma vez a injeção intramuscular, que perfura dolorosamente todo o tecido da pele até chegar ao músculo.

O casal pesquisou e se informou muito com os médicos da região, inclusive um alergista de Ponte Nova, até descobrir o motivo das alergias: a poeira da lama da Samarco. Com dezenas de caminhões e caminhonetes passando de cima para baixo a todo o momento em todos os pontos da cidade a poeira seguia entrando na casa das pessoas desenfreadamente. “Era impressionante, eu saia com a minha bebê aqui de Barra Longa, com ela tossindo e chorando, chegava em Ponte Nova e ela ficava bem. É pertinho daqui, mas lá não tem essa poeira que tem aqui. Só de sair um pouco da cidade ela já melhorava”, explicou Érica.

Edmilson, Érica e a família em Barra Longa – Foto: Alex Tajra

A esposa de Edmilson, assim como grande parte dos habitantes de Barra Longa, batalha diariamente contra a poeira em sua casa. “Todos os dias eu fico varrendo aqui e não para de sair poeira. É poeira pra todo lado, entra pela janela, pela porta, em tudo. São esses caminhões, o dia inteiro levantando pó pra casa das pessoas”.

Na quinta vez que levou Alanis para o consultório da pediatra em Ponte Nova, após vários tipos de remédios e antibióticos aplicados, a médica foi bem clara com Érica: “Olha, já se prepara porque vamos ter que internar ela.” Quando chegaram à Ponte Nova foram informados que só poderiam fazer raio-x no outro dia. Passaram a noite com Alanis no quarto do hospital e, na manhã do dia seguinte, depois dos exames, foi constatada uma broncopneumonia na criança.

Alanis permaneceu por quatro dias internada no hospital de Ponte Nova. “A médica mandou a gente sair de lá depois que ela melhorou um pouco. Não é bom criança ficar no hospital”, disse Érica, um pouco atordoada por que não conseguia fazer a pequena filha pegar no sono com o balanço do colo.

Em meio à conversa sobre o estado de saúde das filhas, agora já mais estável, Edmilson levantou e me convidou para conhecer a cozinha de sua casa. “Olha aqui, isso é tudo que a gente teve que comprar até agora”, disse apontando para uma estante com dezenas de caixas de remédios, algumas já vazias. Eram vários tipos de antibióticos, anti-inflamatórios, antialérgicos, medicamentos para inalação. De acordo com o casal, alguns remédios custam mais de 100 reais a caixa. Edmilson e Érica calculam terem gasto pelo menos três mil reais entre todas as despesas com os problemas respiratórios da filha.

“A Samarco sabe de tudo isso. Sabe porque eu já fui lá falar pessoalmente com eles, falar que minhas filhas estão doentes por causa da poeira, que minha bebê foi internada por causa disso. Eles sabem de tudo e não fazem nada, nunca apareceram aqui pra falar disso, não me pagaram um real”, disse o pedreiro mantendo uma calma típica mineira. “Isso também é papel das autoridades, que a gente confia através do voto e não estão nem aí”, completa Érica.

A família contou ainda que a mineradora Samarco tentou a todo momento deslegitimar as acusações. Em uma reunião organizada pela mineradora com a participação do MAB e do Ministério Público, um engenheiro da Samarco afirmou com todas as letras que a poeira da lama não causava doenças, porque a lama é “inerte”. Depois de uma discussão acalorada com o representante da empresa, Edmilson foi para casa, enfiou todos os remédios numa mochila e voltou para a reunião na Câmara.

Chegando lá, pegou todos os remédios e colocou em cima da mesa. “Se a lama não causa nada então o que é que minhas filhas têm? Por que eu comprei esse tanto de remédio?”, perguntou ao engenheiro e foi ovacionado pelo público presente. Viu a vermelhidão tomar o rosto do representante da empresa.

Nesse mesmo dia, antes da reunião, Edmilson disse que a cidade estava mais limpa do que de costume. Viu vários caminhões limpando a rua principal e algumas adjacentes com intensidade incomum. Chegou e perguntou para um funcionário da Samarco o que estava acontecendo. A resposta foi direta: “estamos deixando tudo limpinho por que vai ter visita do Ministério Público”.

Edmilson não foi o único da família a enfrentar esse tipo de situação. Seu irmão, também morador de Barra Longa, teve de lidar com uma grave alergia da filha. A pele da menina ficou totalmente pipocada depois da lama e, por recomendação médica, teve de se mudar da casa onde vivia para um local afastado da poeira. ­

Apesar de ainda viver com certos resquícios da alergia, Alanis já melhorou consideravelmente desde a sua internação. As duas filhas mais velhas também se curaram das alergias, mas Edmilson e Érica não sabem até quando esse cenário vai perdurar. Os caminhões continuam levantando poeira e essa continua adentrando às casas em quantidades maciças.

A batalha do pedreiro agora, além da indenização pelas doenças das filhas, é recuperar o serviço perdido. O grupo com quem trabalhava, contou Edmilson, agora está menor, com dez pessoas. “Aqui não tem mais nada pra mim, vou pra Belo Horizonte daqui duas semanas pra tentar alguma coisa lá”. Pergunto se não vai sentir falta da família. “Vou, muito, mas o serviço tá lá né. Não consigo mais nada aqui, tem que tentar outros lugares.” Tem data para voltar? “Enquanto tiver aparecendo serviço lá eu vou ficando”.

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens escrito em 2016 sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here