Passeios por exposições com temática afro ou negra em São Paulo quase sempre me rendem boas crônicas. Da última vez que estive no Museu Afro Brasil, ao passar por uma cadeirinha de arruar, – aquele transporte de tração humana (escravizada) muito comum no século XIX, – uma senhora branca, dirigindo-se ao seu grupo de amigas (também brancas), exclamou com incontrolável desejo: “ai, como eu queria poder andar num desses!”.

Tais “boas crônicas”, cada qual um capítulo diferente pela História do Racismo Paulistano Contemporâneo, atam o presente num passado que resiste especialmente na elite da cidade mais rica do país, classe majoritariamente branca que está longe de desapegar do conforto de seus antepassados. Estes assistem à história como se fosse uma vitrine de loja em shopping – assim que eu descrevo seu comportamento em museus.

Minha experiência pelo MASP, durante a exposição “Histórias afro-atlânticas”, não poderia ser diferente. Reunindo diversas obras de diferentes artistas do Atlântico Negro, abrangendo do século XVI ao século XXI, eu não era apenas prestigiadora das artes (a propósito, incríveis), mas também observadora dos costumes presentes. Pude notar, naquela privilegiada tarde de terça-feira (dia em que o MASP opera com a bilheteria aberta), a presença de muitos jovens negros.

Mas a presença branca ainda era majoritária. Velhos e jovens. O silêncio, felizmente, predominava. Alguma ou outra exclamação, sobretudo diante dos retratos, tão realistas. E naquele dia, o retrato que mais chamava atenção do público (branco) era este:

A “polêmica” e anônima baiana, de autor anônimo, do século XIX

As pessoas olhavam intrigadas. Afinal, era um quadro brasileiro. Um retrato. De uma baiana. No século XIX. Os olhares de estranhamento finalmente puderam ser traduzidos em palavras quando um homem branco e visivelmente abastado (seu relógio e vestuário denunciavam sua origem), exclamou em voz alta: “por que essa negra tem tanto ouro?“.

A pintura, para este homem, apresentava um sinal incômodo: não combinava à pele preta da senhora, de olhar tão sereno, as onze voltas de ouro em seu pescoço. Tal qual uma criança mimada e ainda não-alfabetizada, o homem queria que alguém ao seu lado desse a resposta pronta. Mas não muito longe do quadro, e não muito longe do homem, estava a descrição da pintura e a contextualização da obra – referenciais históricos que ele parecia fazer questão de ignorar.

A pergunta daquele homem branco ecoava todos os olhares de curiosidade e estranhamento do branco diante da ostentação do negro. Se ele tivesse lido a descrição, saberia que era um ato de extrema ousadia e resistência uma mulher negra se adornar daquele modo diante de uma sociedade escravocrata. Havia, na época, um conjunto de leis que proibiam negros e negras, especialmente escravizados e escravizadas, de usarem artigos de luxo, como tecidos finos, metais e pedras preciosas.

E se ficasse ainda mais curioso, indo além daquela resumida observação, o homem branco descobriria que as chamadas “joias de crioula” eram peças encomendadas por mulheres negras alforriadas, que as utilizavam em festas e solenidades importantes a fim de demarcar seu status social – algo tão valorizado pela sociedade senhorial. E ainda hoje, como demonstrava os trajes do homem branco no museu.

Mas não. Ele não lia as descrições dos quadros, sendo assim conduzido pelo sentimento de impacto mais rasteiro diante das obras. No caso do meu observado, o sentimento era o racismo. Pude flagrar, mais adiante, este homem e outras duas pessoas praguejando contra as cotas raciais, reclamando que “esse pessoal” tinha “até ouro” e hoje querem continuar com “mordomias e privilégios”.

Não importava o esforço da curadoria em quebrar o paradigma historiográfico engessado e monolítico que cerca a representação de negros/as nas artes, dando visibilidade às inúmeras exceções naquela esfera. A estes homens importava tomar as exceções como regra. O museu, independentemente do que podia se apresentar ali, confirmava a eles a história que sempre ouviram – e aquela que mais lhe convinha.

Bianca Gonçalves é mestranda e graduada em Letras na USP, pesquisadora, professora e poeta.

Crônica publicada originalmente no blog pessoal da autora, em agosto de 2018.

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