Texto: Universidade Livre de Artes Urbanas
Ilustração: Pedro Mirilli

 

o Brasil, assim como diversos países, tem a cultura de cristalizar patrimônios públicos com caráter histórico, sobretudo edificações arquitetônicas que homenageiam personagens célebres da história das cidades brasileiras. É importante a preservação desse aspecto para a preservação da memória de um povo, seja por terem deixado marcas e heranças positivas e/ou negativas sobre as gerações das classes mais populares. Mas, recentemente, intervenções como manifestações artísticas foram feitas sobre esses patrimônios, tais quais as inscrições de pixo e graffiti que foram e continuam sendo constantemente reprimidas pelo poder público – uma vez que as leis de tombamento para a preservação dos patrimônios materiais promovem o impedimento sistemático de qualquer proposta de ação desse tipo sobre as edificações monumentais de valor simbólico e, quiçá, comercial, dependendo dos tratados e caminhos que levaram à edificação dos patrimônios monumentais.

Entretanto a vida é orgânica e a sociedade tem de ser dinâmica em relação ao tempo e aos acontecimentos circunstanciais que inevitavelmente a movimenta, com maior força às juventudes do momento em que se registra o período histórico de seu tempo.

Para se entender o conceito de patrimônio público edificado, deve se considerar toda e qualquer edificação na cidade construída a partir de investimentos com o dinheiro público, provido do povo que, com seu trabalho, contribui para isso, compondo assim uma sociedade interativa com o dever de gozar do seu estado de direito. Assim como entende-se que uma edificação monumental é patrimônio público, a livre expressão também é patrimônio público, assim como o exercício do patrimônio moral deve reconhecer as lesões causadas de patrimônio a [e em] patrimônio.

Por exemplo: uma pixação com inscrições reivindicatórias de um povo historicamente oprimido, na superfície de um monumento que simboliza a opressão sobre esses povos. Isso seria o confronto legítimo entre patrimônios em busca de uma sociedade igualitária e justa. O Estado, e/ou uma pequena parcela da sociedade, não deve autorizar a instalação e/ou permanência de um patrimônio público sobre o outro, portanto deverá haver acordos e consentimentos comuns. Isso é reflexo da desigualdade e da injustiça em uma sociedade contribuinte ao Estado que lhe deverá servir, e, por conta  dessas disparidades, fica difícil considerar o poder imaculado de qualquer patrimônio público, seja qual for o seu aspecto e sua representação.

O julgamento da contravenção do manifestante sobre o patrimônio edificado será avaliado pelo valor histórico do monumento, que por sua vez fora “ressignificado” com a interferência da manifestação, e isso acarretará severas ações punitivas para que sirvam de exemplo aos demais seguidores das aspirações desse manifestante. Entretanto, levando em consideração informações extraídas em textos a partir de documentos de órgãos que visam reconhecer e zelar pela preservação de patrimônios “cada indivíduo é parte de um todo – da sociedade e do ambiente onde vive – e constrói, com os demais, a história dessa sociedade, legando às gerações futuras, por meio dos produtos criados e das intervenções no ambiente, registros capazes de propiciar a compreensão da história humana pelas gerações futuras.”

Interpretando essa citação, entende-se que uma pichação, graffiti ou apropriação temporária de edificações públicas, também podem ser interpretadas pela a ação desse manifestante  que se dispõe, mesmo que por métodos ilegais, a imprimir,  – e mesmo que simbolicamente – o diálogo entre as narrativas temporais  com a proposta de provocar novas reflexões da sociedade atual perante a existência e conservação da edificação em questão, as quais em muitos casos homenageiam as figuras das suas gerações antecessoras. No entanto, num período mais recente, gerações obtiveram interpretações da opressão, do genocídio e da barbárie de colonos europeus sobre uma população indígena, e sintomaticamente, no ano de 2013 manifestantes fizeram pichações na edificação do monumento às bandeiras, no parque Ibirapuera; como também, em setembro de 2015, as intervenções feitas na estátua de Borba Gato (bandeirante paulista), com as inscrições “Bandeirantes assassinos”.

Essas ações poderiam também ter acontecido nas grandes rodovias de São Paulo, que homenageiam Padre Anchieta, Raposo Tavares, Fernão Dias entre tantos outros exemplos de edificações que são patrimônios públicos, e hora ou outra tombados por órgãos especializados, que por sua vez são mantidos com o dinheiro público, direta e indiretamente.

Outros tipos de intervenções de grande relevância feitas sobre monumentos edificados, que podem ilustrar este texto,  foram os “Ensacamentos” do coletivo 3Nós3 no período mais crítico da Ditadura Militar, na década de 1970 – no chamados Anos de Chumbo -, enquanto força visual da apropriação das obras públicas com sacos nas cabeças de personagens oprimidas e sem voz na sociedade.

Contudo, a ação do manifestante subversivo que interfere com a sua ação de “vandalismo” sobre o patrimônio público é efêmera e em muitas vezes é passiva de remoção, sem que cause danos irreversíveis à integridade do patrimônio. Todavia, uma vez que ações como essa forem registradas em livros, fotografias, jornais e revistas, artigos universitários  ou mesmo que pelo imaginário coletivo de um povo, essa ação poderia também receber o mesmo tratamento que recebem os patrimônios imateriais – mas claro, dependendo da intencionalidade de sua ação, se for apreciada como digna de nota; com poder de causar reflexões e fazer com que pensemos novamente e questionemos: qual o sentido daquela edificação no espaço público, interferindo na paisagem, que também é outro patrimônio do povo? E, dessa forma, poder pelo menos alternar a interpretação do público diante às representações desses monumentos que foram cristalizados pelo estado e pela sociedade na condição de patrimônio.

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