À medida que a estrada de terra ia se estreitando, o cheiro das plantas barbas-de-bode, dos capim-gordura e das braquiárias se intensificava nos arredores do Pico do Jaraguá, ponto mais alto da cidade de São Paulo. “Foi ali mesmo, eles iam parar a cidade”, me disse Adriano Sampaio numa manhã seca de maio, se referindo à ocupação dos indígenas na principal antena do município no ano passado. Instalada nos idos dos anos 70, a imensa estrutura responsável pela transmissão de sinal de empresas de telecomunicações do Brasil foi tomada pelos guaranis em setembro passado, como reação à anulação das demarcações indígenas no mês anterior pelo ministro da Justiça Alexandre de Moraes.

Sob o sol forte, Adriano remonta o movimento como se o tivesse presenciado um dia antes do nosso encontro. “Foi histórico. Tinha uma salinha para cada empresa, nas portas estava escrito: Vivo, NET, Globo…tudo nas mãos dos indígenas. Nunca tinha visto tanto botão junto. Sorte que um deles tinha conhecimentos de eletricista e desligou os fusíveis”, conta orgulhoso. A ocupação representou um marco na união dos povos originários. Indígenas de diferentes etnias, capitaneados pelos guaranis, encorparam o movimento que foi parcialmente vitorioso. Em acordo, o governo prometeu rever a anulação da portaria que garantia aos guaranis a terra da Aldeia Itakupe, mas até o momento não tomou uma decisão.

Na primeira vez que conversei com Adriano, em 2014, ele tinha acabado de criar a página Existe Água em São Paulo, ironia direta com a situação dos reservatórios de água à época. A seca era um couvert para as áreas nobres e uma realidade brutal para a periferia. Preenchendo as lacunas do poder público, ele percorria a cidade em busca de nascentes, bicas e fontes naturais que se estendem pelas ruas e passam despercebidas pelos moradores da maior metrópole da América Latina. Buscar água a quase cinquenta quilômetros acabou se mostrando só mais uma extravagância de governo, corroída pelas informações de que um terço da água se perdia (e ainda se perde) nos canos da Sabesp.

A Prefeitura e o Governo do Estado não acompanharam a evolução dos mapeamentos de Adriano nos últimos anos; o período foi marcado por uma brusca transição de poder na gestão municipal. Fernando Haddad passou o bastão para João Doria. O acadêmico e o empresário, apesar dos programas partidários opostos, dividem o mesmo palanque no que tange à política da água na cidade, rejeitando qualquer contato com os ativistas ambientais.

“Não tá com cara de uma nova crise?”, sentencia Adriano logo nas primeiras palavras que trocamos no Pico do Jaraguá. O Sistema Cantareira amargava 45,9% de índice armazenado de água, o que rendera algumas manchetes naquela semana.

Os quatro anos trabalhando como desbravador renderam apelidos insinuantes: “o caçador de rios”, conforme o The Guardian ou “caçador de nascentes”, como dito no programa Esquenta!, da TV Globo. Da Pompeia ao Perus, são dezenas de riachos, lagos, nascentes, bicas e fontes descobertas por Adriano em suas expedições. Tudo devidamente registrado em vídeos publicados na página do Facebook Existe Água em São Paulo.

No início de uma longa conversa na Aldeia Tekoa Itakupe, em frente ao lago que está desbravando junto aos guaranis, Adriano explica que a região abriga a bacia hidrográfica do Ribeirão Manguinho, um rio vivo que não recebe nenhum tipo de poluição ou esgoto, mas que se encontra parcialmente assoreado, pois parte de sua mata ciliar foi derrubada pelos juruás (homens brancos) para o plantio de eucalipto.

Nas horas que seguiram, o ativista falou sobre direito à cidade, ocupação dos espaços públicos e como transformou sua percepção sobre a metrópole a partir do convívio com os povos originários:

Transição para a vida na cidade  

Sempre tive contato com a natureza. Minha família, de pescadores, veio da seca, da Chapada da Diamantina, por isso a gente criou uma relação de preocupação com a água desde criança. Acabei vindo pra São Paulo e exercendo uma profissão burocrática porque a cidade muitas vezes nos faz seguir esses caminhos. Depois, comecei a perceber o quanto as pessoas sentem falta do contato com a natureza na cidade.

Início do trabalho com a água

Meu trabalho com as nascentes começou em 2013, quando eu conheci a praça Homero Silva¹, no bairro em que eu moro, e percebi ali um espaço a ser ocupado. Lá, encontrei olhos d´água do rio Água Preta que estavam aflorando e entendi que isso acabava fazendo com que as pessoas não frequentassem a praça, onde se formavam grandes poças. Aí eu e uns amigos começamos a pensar o que poderíamos fazer pra dar vida àquele lugar. Um dia a gente foi lá, sem avisar ninguém e construiu um lago. A partir disso, nos apropriamos do espaço para cuidar das nascentes e a minha relação com as pessoas e com a cidade começou a mudar. Quando a comunidade começou a ver que aquilo era benéfico, que ajudava a reduzir até a dengue, famílias começaram a ter mais contato com a praça. É uma ação prática e, juntando os conhecimentos, é só cada um trazer uma sabedoria diferente. É preciso fazer desses seres, desses cidadãos, agentes transformadores. Cada comunidade, cada bairro, deveria fazer a gestão da sua água, e se reunir pra falar sobre isso. Só assim poderia fortalecer a vida na cidade, pra ter mais qualidade de vida. Fico realmente feliz quando vejo as crianças de quatro, cinco anos, falando de olho d’água, de nascente, de peixes. Esse é o lugar que eu quero alcançar.

Atuação do poder público

Me apropriei daquela praça porque o próprio poder público é contrário a essas intervenções, não dão a liberdade e não capacitam as pessoas para que elas se apropriem dos espaços e cuidem dos espaços. E não só a prefeitura foi contra, vários ambientalistas e acadêmicos vieram me ameaçar de processo, falaram que eu estava mexendo onde não deveria. Já tomei porrada de todo mundo, principalmente dos que não aceitam conhecimentos tradicionais, acham que tem que ser técnico, acadêmico. Existem mais de trezentos rios na cidade e São Paulo tem tecnologia para recuperá-los, mas falta vontade política. Já existe uma biotecnologia que utiliza plantas aquáticas para recuperar as águas poluídas, a chamada fitorestauração. Foi o que fizeram no rio Sena, recuperaram o rio utilizando jardins filtrantes. Por isso eu acho que a gente tem que pôr a mão pra fazer acontecer, não tem como ficar esperando a prefeitura ou o governo, tem que se juntar com as pessoas e ser o agente transformador, não ficar só sonhando.

Relação com os guaranis

Tudo se transformou mais ainda quando eu me aproximei dos guaranis, depois que fiquei sabendo que eles vivem dentro da cidade mantendo a resistência e a cultura deles viva. A convivência com os guaranis mudou muito a minha visão sobre a vida na cidade. Vejo o quão importante é a luta deles pela preservação da natureza. Hoje acredito que a cidade deveria ter um formato de aldeia, eu percebi que esse é o melhor modo de se viver. Eu me dei a oportunidade de passar cem dias aqui na aldeia pra entender o modo de vida deles e transformar o meu. Nesses quatro anos que eu frequento a aldeia, eu comecei a perceber a quantidade de coisas erradas que tem lá fora e o quanto a gente vive uma vida individualista. A gente precisa de mais coletividade. Aqui, com os guaranis, eu percebo isso. Quando tem comida ela é divida pra todos. Quando alguém está doente, você vê uma preocupação no coletivo pelo bem estar coletivo. Aqui os guaranis não falam que a terra é deles, eles falam que a terra é de todos. E isso difere muito da vida que eu levava na cidade, eu só pensava na questão individual, na minha vida, no meu bem estar, nas minhas coisas. A minha relação mudou, tive uma compreensão maior sobre solidariedade, coletividade, de viver uma vida mais simples, menos consumista. Quando eu vejo as pessoas andando na rua mexendo no celular, eu vejo um campo energético em volta delas. Quer dizer que as pessoas preferem falar com outra que está bem longe do que socializar com as que estão ao seu redor. Repare quanto a pessoa perde vivendo uma vida virtual.  

Ocupação dos espaços públicos

Vejo que as pessoas que vivem na cidade são individualistas, moram em casas cercadas por muros altos, portões altos, condomínios. Muitas vezes essa sensação de medo e insegurança é plantada pela mídia, que faz com que as pessoas tenham medo de sair na rua. Pra mim, a rua é como se fosse o quintal da minha casa. Acredito que as pessoas deveriam ver a rua como a extensão da sua vida. Penso que elas devem ocupar mais os espaços públicos, se organizarem entre si pra cuidar das áreas verdes sem esperar o poder público.Através do meu trabalho eu percebi que a gente pode transformar a cidade, mas também entendi que isso tem que partir de cada um. Você mesmo pode tomar uma atitude, se juntar com os amigos, cuidar de uma área verde, de uma praça. As pessoas têm isso dentro delas, essa coisa transformadora. Só que falta oportunidade, a vida na cidade acaba tomando o tempo de todos. Pra eu mudar totalmente minha vida eu tive que abrir mão de muitas coisas materiais, abrir mão de um bom salário, ganhar bem menos, mas ter uma qualidade de vida muito maior que eu tinha antes.

Adriano e o rio que está desbravando junto com os guaranis da Aldeia Tekoa Itakupe – Foto: Manuela Rached Pereira

Transformação e conscientização

Quando eu comecei a me aprofundar no projeto da água, passei a consultar mapas da cidade, fazer as expedições na periferia, e quando achava as nascentes, fazia vídeos curtos pra mostrar a história daquele rio, daquela região. Geralmente as pessoas só conhecem os rios Pinheiros, Tietê e Tamanduateí, então eu procuro conversar com moradores antigos dos bairros pra eles me falarem um pouco da história dos rios, contarem sobre suas relações com a água. Dessa forma eu passei a instigar as pessoas, questionando se nós não podemos ter nossos rios de volta, se nós não podemos limpar esses rios. Esse meu trabalho sobre os rios da cidade é pra gerar uma conscientização nas pessoas. Quando eu chego na periferia pra falar com esses moradores, por vezes eles não sabem que tem uma nascente ali. Justamente pelo meu trabalho um monte de gente vem na minha página e deixa mensagens falando “olha, eu não sabia que aquilo era uma nascente, passava todo dia por aquele lugar e agora eu sei o que é”. Quando as pessoas começam a ter essa consciência, já é um passo para se mudar a vida na cidade. A gente tem que derrubar certas barreiras, achamos que a natureza é uma coisa fora do nosso meio de vida, do nosso contexto. Mas não, tudo tem uma ligação: a natureza, o homem, a terra. Tudo está interligado. Quando se desliga isso, vemos essa cidade com pessoas doentes pela falta da natureza. E a gente não percebe porque os rios da cidade são como as veias do nosso corpo, as artérias. Se elas estão sujas, então todo o corpo está doente. São doenças físicas e espirituais.

Periferia e as formas de convívio na cidade

Eu comecei a ir pras zonas periféricas e fazer expedições por conta da quantidade de nascentes a céu aberto que se encontra nessas regiões. Percebi também que lá as pessoas estão cuidando das nascentes. Isso porque quando acaba a água na cidade, o primeiro lugar atingido é a periferia, e essas pessoas não vão comprar água mineral para tomar banho, elas vão pegar de uma bica ou nascente que tem nos arredores ou até mesmo no quintal de alguém. Quem vive mais afastado, longe do centro, cria uma outra relação com a cidade e com seu território. Vejo que nos bairros mais nobres a ocupação dos espaços públicos é muito menor, estão todos mais preocupados com os espaços privados. Conheci pessoas que, no passado, tiveram contato com o rio e diziam como elas eram mais felizes quando tinham essa possibilidade de ter um contato maior com a natureza. Isso transforma de alguma maneira. Essa transformação aconteceu comigo, mexe até com o nosso espírito. É uma coisa que eu não sei te explicar, minha relação com a cidade começou a ser diferente.

Bastidores de uma nova crise hídrica

Os eventos climáticos extremos, por conta das mudanças no clima, estão acontecendo em menor tempo. Um sinal que eu uso bastante é o volume das nascentes, e eu to vendo aqui hoje que diminuiu bastante o nível da água. Já estamos atravessando um longo período sem chuvas. Estamos na estiagem, mas no mês de maio só choveu 20% da previsão. Então junta o desmatamento na Amazônia, a morte do Rio Doce, tudo isso acaba afetando o clima. Parece que só afeta o lugar, a vida dos ribeirinhos, mas não, afeta a vida de todo mundo. É muito grave isso: a morte de um rio e o desmatamento. Se nós formos analisar bem, a destruição é muito maior que a recuperação. Tudo isso influencia. Por isso as chuvas, os rios voadores, não estão vindo pra cá. Então nada foi feito, da crise hídrica de 2014 até hoje, nada foi pensado. O padrão de consumo de água continua o mesmo. Acho que quando voltou a chover, a chuva lavou a memória das pessoas. E a gente pode viver uma crise dessas de novo. Só que eu acho que dessa vez não vamos aguentar, uma nova crise hídrica vai causar um colapso hídrico. Outras pragas, como dengue e febre amarela, também são resultados da destruição da natureza. Estamos colhendo o que plantamos no passado.

Possibilidades de preservação e reorganização da cidade

Construímos uma cidade para os carros, não pras pessoas. Imagine se antes utilizássemos o rio Tietê como meio de transporte, que existissem portos nas pontes do rio para escoar as mercadorias. Iríamos depender muito menos do automóvel e teriam menos carros nas ruas. Se os nossos rios estivessem limpos teríamos parques lineares com reflorestamento. Agora, pense, imagine uma cidade com os rios limpos. O empresário está andando na Faria Lima, de terno e gravata, e pára para tomar um banho de rio no horário de almoço. As pessoas não teriam essas doenças. Estresse, neurose, bipolaridade, depressão, não haveria nada disso. Mas parece que a gente se preocupa ainda muito pouco com isso. Ninguém mudou seu padrão de consumo, e o poder público insiste na ideia de buscar água cada vez mais longe e não se preocupa com o próprio quintal. O que fizemos nas cidades foi colocar a natureza fora, mas nós somos conectados à ela. Acredito na recuperação dos rios e na distribuição de água local na cidade. Poderia existir uma logística para distribuição de água aqui, como bairros ecológicos e pequenas estações de tratamento espalhadas. Se existisse esse tipo de organização, quando houvesse uma crise hídrica, as pessoas fechariam a torneira da Cantareira e abririam a dos rios da cidade. Existe essa possibilidade, isso pode ser feito. Só nesse rio [da aldeia Itakupe, que está sendo construído por Adriano com a ajuda dos guaranis] tem 30 mil litros de água. Ele poderia abastecer os bairros que estão em volta. Poderíamos levar isso pra cidade. É tudo muito novo, mas estamos aprendendo. Aumenta cada vez mais o número de pessoas preocupadas com isso. Apesar de tudo, está melhorando, eu percebi que nesses quatro anos houve uma evolução. As pessoas vão ter que repensar suas formas de viver, vai chegar uma hora que vão pensar ‘olha, esse capitalismo aí…não tá dando certo’.

1- Praça localizada no bairro da Vila Pompeia, zona oeste de São Paulo, também conhecida como Praça da Nascente.

Essa reportagem foi publicada anterioremente pelo canal Fora

Alex Tajra é jornalista 

1 COMENTÁRIO

  1. […] Construímos uma cidade para os carros, não pras pessoas. Imagine se antes utilizássemos o rio Tietê como meio de transporte, que existissem portos nas pontes do rio para escoar as mercadorias. Iríamos depender muito menos do automóvel e teriam menos carros nas ruas. Se os nossos rios estivessem limpos teríamos parques lineares com reflorestamento. Agora, pense, imagine uma cidade com os rios limpos. O empresário está andando na Faria Lima, de terno e gravata, e pára para tomar um banho de rio no horário de almoço. Alex Tajra – Revista Saci […]

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