a tarde de novembro era abafada em Barra Longa. O taxista Zé Eduardo organizava o material de construção que havia adquirido pra reformar sua casa quando um garoto esguio passou de motocicleta alardeando a vizinhança. “Tá tudo bem, gente. Fui em Gesteira agorinha e não tinha nada lá, a água ainda nem chegou lá”, disse, esbaforido. A pressa era por causa do noticiário na televisão, que anunciava de hora em hora a queda da barragem do Fundão, a cerca de 80 quilômetros da cidade. “Ih, isso aí não vai dar em nada, vai ser só uma aguinha pra beira do rio”, conjecturou Zé Eduardo após o conforto trazido pelo jovem motociclista.

Não se passaram nem duas horas e “Sedex”, o garoto da moto que recebera a alcunha por seu emprego nos Correios de Barra Longa, voltou, desta vez mais alvoroçado. “Seu Zé, tentei ir até Gesteira, mas a ponte caiu. A lama levou tudo”, gritou e saiu passando as notícias para todos os moradores da Curva da Capela, bairro periférico da cidade. Já havia anoitecido, e Zé Eduardo passou a organizar um pequeno mutirão com sua esposa, Edvânia, e suas três filhas, Taiana, Thalia e Ana Clara. A família começou a retirar móveis e aparelhos de valor da casa da mãe, que mora no primeiro andar do sobrado.

Depois de resguardar os objetos, saíram à rua para ajudar outros moradores do bairro, além de alertar os que ainda não acreditavam no potencial destruidor da lama. O auxílio não teve a efetividade que desejavam e, em pouco tempo, o barulho estrepioso do mar de rejeitos vindo pelo rio tocava seus ouvidos. Se refugiaram  na varanda da casa que tem vista para o rio e permaneceram inertes a madrugada inteira, observando, com a pouca luz que tinham, a lama engolir casas, animais, veículos e o que mais estava à mercê na via.

“A lama chegou aqui era tarde da noite. Já tinha a notícia circulando na mídia desde a parte da tarde, e a Samarco não avisou a gente, não falou nada, não fez uma ligação pra Prefeitura para as pessoas se prepararem. Por sorte, muita gente ligou para os familiares em outras cidades, se não morria todo mundo. Aqui, dez da noite tá todo mundo dormindo”, me disse Zé Eduardo na sala de sua casa, onze meses após a queda da barragem. “A gente achava que se a lama fosse chegar em Barra Longa ia vir helicóptero da Samarco, bombeiro, polícia, qualquer coisa. Não veio ninguém”.

Durante a madrugada, a lama invadiu o primeiro andar da casa de Zé Eduardo e acumulou na garagem, formando um espécime de manguezal de rejeitos com meio metro de altura. Entrada e saída da casa tornaram-se inviáveis, e o taxista improvisou uma escada que descia do segundo andar direto para a rua. Também adaptou, com sucesso insignificante, uma lata de tinta vazia como balde para retirar o excesso da lama acumulada na porta do sobrado.

Nascidos e criados em Barra Longa, Zé Eduardo e Edvânia passaram as últimas duas décadas vivendo em Belo Horizonte, onde ele trabalhava como mestre de obras. Em 2011, já desgastado com a metrópole e com receio das filhas estudarem em uma cidade grande, conseguiu uma placa de táxi e voltou para a cidade natal saudoso do marasmo. “Se eu soubesse que tudo isso ia acontecer, tinha ficado. Até hoje eu penso, me arrependo de ter voltado. Tava lá, tranquilo, quieitinho no meu canto, vivia bem em BH. Aqui era uma cidade deliciosa, mas agora tudo foi destruído, é só problema”, conta Eduardo.

Além de trabalhar como taxista, levando e trazendo as pessoas das cidades e povoados próximos a Barra Longa, Zé Eduardo e Edvânia administram uma loja de artigos esportivos no centro da cidade. Desde que a lama invadira a cidade, todavia, as ocupações se transformaram em fontes inesgotáveis de prejuízo. A família investiu, pouco antes da queda da barragem, em uma quantidade expressiva de novos produtos para a loja, visando os anseios aquisitivos de final de ano. Mesmo com a chegada de centenas de trabalhadores da Samarco, as vendas no Natal foram inexpressivas “Fiz uma compra de mais ou menos R$ 7 mil e não consegui vender nada. A cidade destruída, ninguém quer comprar nada, ninguém nem pensa nisso”, disse o taxista. A lama, conta Eduardo, secou e se transformou em uma poeira que impregnou a pequena cidade — incluindo as roupas e outros acessórios que ficavam dentro da loja. “Essa compra eu fiz em outubro do ano passado e ainda estou pagando os juros das dívidas que eu fiz. Você sabe, né? Com fornecedor, não tem brincadeira. Se você não paga uma vez, nunca mais te vendem nada”, explica.

Zé Eduardo e Edivânia apoiados em uma grade na beira do Rio do Carmo – agora amarronzado pelo mar de rejeitos – Foto: Alex Tajra

Sua principal fonte de renda, o táxi ficou parado por quase três meses. Como as estradas que levam às cidades próximas estavam intransitáveis, a Samarco teve de contratar vans para levar as pessoas aos seus respectivos locais de trabalho. Os carros da mineradora também levavam moradores para os hospitais da região. Um ano depois da lama, as estradas foram recapeadas e o taxista consegue fazer poucas viagens.

A decida do mar de rejeitos pelo rio Gualaxo do Norte buliu psicologicamente as filhas do casal. Tainara e Thalia, adolescentes de 16 e 15 anos respectivamente, absorveram melhor o trauma e, um ano depois, superaram parte de suas aflições. Ana Cláudia, a caçula de 4 anos, ainda sofre diariamente com os reflexos da queda da barragem.

“Logo depois que caiu tudo, ela não queria mais ficar sozinha em casa, tinha medo. Não consegue mais assistir televisão sozinha, fica pensando em tudo que aconteceu, quer sair de casa e morar em outro lugar”, relata Edvânia. Algumas semanas depois da queda de Fundão, Ana Cláudia passou a frequentar uma psicóloga duas vezes por semana, o que atenuou suas crises de ansiedade. “Mesmo assim, até hoje ela não consegue ir ao banheiro sozinha, tem medo”, diz. O casal não vê perspectivas de melhora, nem compreende como será a reação de Ana Cláudia a partir de agora (por conta da demanda ascendente por atendimento psicológico na cidade, a menina só consegue ser atendida por uma profissional de duas em duas semanas).

A caçula também faz parte do contingente de crianças que enfrenta problemas alérgicos em Barra Longa. “Ela nunca teve nenhum problema de respiração, nada, nada.”, conta Zé, “depois que essa lama veio ficou com uma tosse chata pra danar. E não para de jeito nenhum, quer dizer, agora, depois da vacina, deu uma melhorada”. Ana Cláudia visitou a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de Barra Longa diversas vezes. Devido à precariedade do sistema público de saúde na cidade, contudo, só existem clínicos gerais disponíveis para atender a população, e nenhum especialista.

O casal teve de levar Ana Cláudia para Ponte Nova, cidade a 30 quilômetros de Barra Longa, para ver um médico particular. Antonio Carlos Pires Maciel, pediatra e alergista, confirmou para a família que a tosse da menina estava diretamente relacionada à poeira da lama, que dificulta a atuação do sistema imunológico das crianças. Depois de algumas viagens a Ponte Nova, Ana Cláudia tomou uma vacina estimulante para imunidade, que atenuou parcialmente sua tosse. A medicação, três gotas abaixo da língua, custou 300 reais.

“Se juntar tudo que já foi com gasolina pra ir pra Ponte Nova, um monte de remédios que eu comprei aqui em Barra Longa e que não deram em nada…mais essa vacina cara aí, já devo ter gasto mais de R$ 3 mil com minha menina”, relata Zé Eduardo. Quando o casal procurou a Samarco, não houve retorno. “Já fui reclamar com eles lá, no escritório, nas reuniões. Eles falam que já fizeram tudo, que disponibilizaram médicos e ambulância para a Prefeitura. Mas de que adiantam esses médicos? Eles sabem que tem problema de alergia aqui, de tosse, ferida. E não resolvem por que não querem”.

Avesso ao ativismo, Zé Eduardo passou a frequentar as reuniões promovidas pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) com o Ministério Público e a Samarco pela reivindicação dos direitos dos atingidos. À reportagem, o taxista afirma que notou estratégias utilizadas pela mineradora para dividir os moradores, como a criação de atritos entre eles e o tratamento diferente para classes sociais distintas.

“As pessoas mais ricas, os poderosos de Barra Longa, pessoal do centro, eles estão fazendo uma espécie de complô com a Samarco, negociando diretamente com a empresa. E nós, os mais pobres, ficamos com o MAB. Eles ficam fazendo esse joguinho com as pessoas.”

Outros moradores de Barra Longa repetem essa tese. Atingidos de zonas afastadas, povoados e agrupamentos estariam sendo tratados de forma secundária, enquanto os proprietários dos comércios e grandes fazendeiros pressionam a Samarco para um adiantamento das indenizações. Promotores e procuradores do Ministério Público se posicionam constantemente contra esse tipo de acordo, argumentando prejuízos futuros aos atingidos nos processos que podem vir a correr na Justiça.

Em uma das reuniões do MAB com a Samarco, Zé Eduardo se inscreveu para falar e explicar a situação de saúde da filha. Quando pegou o microfone e começou a contar sua história, viu que os diretores da Samarco conversaram entre si. “Tenho certeza, minha esposa até viu eles falando, que tava perguntando ‘quem é esse cara’? E devem ter falado pro José Luis [um dos representantes da mineradora] que eu sou aqui da Volta da Capela. Só sei que logo depois que eu acabei de falar ele disse ‘temos que tratar com os grandes e com os pequenos também’. Entendeu? Os grandes são os do centro e os pequenos somos nós”, conta.

Atendendo a um pedido para capturar uma foto do casal, nos encontramos dias depois da conversa. O taxista reclamava da Praça Manoel Lino Mol, destruída e posteriormente reformada pela Samarco no final de outubro. Como versa o clichê, repetido por Zé Eduardo, o local é uma típica “praça de interior”. A mineradora reciclara a lama contaminada com resíduos de ferro para fazer os tijolos que deram nova cara ao local. “O acabamento desses caras é péssimo, tudo ferrado. Daqui uns meses esses tijolos já vão estar todos trincados. Fora que é feito dessa lama aí, que a gente nem sabe que que tem”. Na beira do rio do Carmo, onde havia centenas de árvores, pés de frutas e animais, há agora um deck de madeira sintética com uma grade separando as pessoas da beirada. Debruçado, Eduardo comenta em tom fúnebre “É isso aí que agora temos de ver todos os dias.”

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados” (2016), conjunto de reportagens sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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