Era uma noite fria de quinta-feira na última semana de agosto. Cheguei quase no horário marcado, pensando que não haveria mais lugares. A reunião, prevista para começar às seis horas da tarde no Centro de Convenções de Mariana, estava atrasada e quase vazia. Em frente ao lago artifical na parte externa do salão estava uma dúzia de pessoas que conversavam em grupo. Todos ali eram de Bento Rodrigues, primeira região atingida pela lama da barragem do Fundão. A ocasião marcava mais de nove meses que a enxurrada de rejeitos de minério havia levado casas, terrenos, animais e renda de moradores do distrito mineiro.

Uma das mulheres do grupo estava exaltada, se revoltava com o fato de poucas pessoas estarem presentes. “Tem gente que vem lá da roça para assistir essas reuniões e o povo que mora aqui do lado não vem. Não dá pra entender.” Sento ao lado de um homem mais velho, rosto castigado pelo sol, e pergunto se ele sabe o que vai ser discutido. “Ah, tão falando aí que vão decidir o terreno. Mas eu sei que eles ainda não compraram, eu sei que eles não fizeram nada ainda”, disse baixinho. Fazia menção aos planos de reassentamento da Samarco.

Como parte do seu planejamento para reconstruir as cidades destruídas, a mineradora selecionou terrenos com base em critérios próprios e colocou-os para votação dos moradores. A área do “novo” Bento Rodrigues foi escolhida em uma votação com todos os chefes de família do vilarejo. Porém, dias depois da decisão, os moradores ainda pouco sabiam sobre a situação do terreno e confirmação de sua compra pela Samarco.

Ao me aproximar do grupo, um homem robusto, vestindo um agasalho moletom cinzento e boné da mesma cor, começava a se queixar do tratamento que recebiam dos cidadãos de Mariana. Quando liguei pela primeira vez ao ativista Sérgio Papagaio, do Movimento dos Atingidos por Barragens, em meados de maio de 2016, para ter uma ideia dos principais problemas dos atingidos, ele relatou o preconceito que os moradores de Bento Rodrigues vêm sofrendo na cidade.

Natural de Bento, o homem que vestia cinza é Alexandre Juliano Vieira, desempregado desde o rompimento da barragem. “Vish, às vezes as filas aqui pra emprego tem mais de quinhentas pessoas. Tem gente que até vem com barraca aqui, passa a noite pra tentar uma vaga”, contou. Assim como outros milhares de atingidos, Alexandre não teve direito ao cartão de ajuda da Samarco, que paga um salário mínimo e uma cesta básica por mês a algumas famílias. Não se sabe muito bem como foi feita a seleção para a distribuição dos cartões, mas os que não receberam só têm a recorrer ao Ministério Público.

Pouco antes de começar a reunião, tento conversar com algum representante da Samarco. Na ocasião eram mais de vinte, contando os terceirizados, um contraste gritante com as reuniões de Barra Longa, onde sequer havia um funcionário da mineradora. Me dirijo a um homem muito magro, com uns dois metros de altura e que vestia um terno perfeitamente alinhado. “Não estou autorizado a falar, mesmo porque não tenho conhecimento de muitas coisas. Sou só o advogado da Samarco”. Ele então me encaminhou a um outro homem, esse com um uniforme completo da Samarco em azul marinho.

“Também não sei muito o que te falar não, sou só um analista de comunidades”, me disse o funcionário. “Mas você não pode me falar sobre como está sendo a conversa com as comunidades?”. “Não, melhor não. Não sei muito para falar, melhor o assessor de imprensa. Cadê o Douglas?”, perguntou para o advogado que ainda estava ao meu lado. “Já já ele chega”. Não deu um minuto e o assessor Douglas Stofela atravessou a grande porta de vidro fumê do Centro de Convenções.

Camisa apertada, gel no cabelo e uma aparência cansada, Douglas responde à primeira questão com o mantra dos assessores de imprensa. “Não tem como me mandar essas perguntas por email? Eu tenho um release que tem tudo lá, é só você ler”. Depois de alguns minutos consigo arrancar dele algumas palavras. Pergunto como são feitos os processos de distribuição dos cartões e por quê determinadas famílias não o receberam. “Foi feito um cadastro pela empresa logo no começo do ano [2016], e com base nisso nós vemos quem necessita do cartão”. “E as pessoas atingidas que não receberam?”, questiono. “Olha, são vários critérios que foram estipulados. Às vezes eu sou seu vizinho, por exemplo, você ganha o cartão e eu não. Isso é normal, os problemas foram diferentes para cada um”, falou Douglas, revelando sem intenção o sistema aleatório da mineradora.

Pergunto também sobre os cadastros, se são realmente exigências do Ministério Público Federal, como as terceirizadas da Samarco vinham informando em Barra Longa. “Tudo que nós fazemos, absolutamente tudo é em parceria com o Ministério Público”. Questiono ainda especificamente sobre o chamado “cadastro final”, a princípio o definitivo, feito para mapear as indenizações das pessoas. “Foi um pedido do Ministério Público?”, pergunto. “Esse não”. É o bastante.

Com quase uma hora de atraso e então surpreendentemente lotada, a reunião inicia. Logo entendi a importância daquele momento. Pela primeira vez, o presidente da Fundação Renova, designada pelo “acordão” como a entidade que vai administrar as indenizações dos atingidos, Roberto S. Waack, dava as caras. Galib Chaim, diretor-executivo de projetos de capital da Vale e membro do conselho da Renova também estava lá.

Waack, após a leitura de um documento com todas as reivindicações dos atingidos, se apresentou e respondeu a algumas questões técnicas, principalmente relacionadas à ONG Caritas, contratada para fazer a análise das perdas dos atingidos. Naquele dia a Samarco havia aprovado, depois de meses de negociação, a contratação da entidade, vista como uma vitória pelos atingidos. A instituição faria parte da segunda parte do processo de cadastro, o chamado “cadastro físico”.

Percebi uma confusão generalizada entre os presentes ao ouvir os representantes da Renova dissertarem sobre o tal cadastro. Enquanto em Mariana esse questionário ainda não tinha sequer começado – e tampouco havia uma data definida para que isso acontecesse – em Barra Longa ele estava a todo o vapor, tocado pela empresa Synergia, famosa por prestar serviços de consultoria a construtoras e mineradoras de grande porte no Brasil e na África.

“O doutor Guilherme vai dar só uma palavrinha porque ele está atrasado”, disse Waack, passando o microfone para o promotor de Mariana. “Esse é o nosso anjo da guarda”, me disse a mulher sentada ao lado, eufórica desde o primeiro minuto de reunião. “Pode anotar aí nas suas coisas”, acrescentou apontando para o meu caderno. Guilherme de Sá Meneghin é um dos mais ativos na luta pelos direitos dos atingidos. Desde a enxurrada de lama em 2015, atua para que a Samarco cumpra suas obrigações e indenize as pessoas de forma correta. “Escuta gente, é muito importante que vocês façam esse cadastro. Agora está valendo, antes era treino, agora é jogo. Esse cadastro vai nortear as idenizações de vocês.”, disse o promotor.

Com a fala pausada e bem explicativa, disse mais algumas palavras, respondeu a duas perguntas e foi embora a passos largos. Corri atrás dele para alguns esclarecimentos. “Esse cadastro tem participação do poder público?”, questiono após alcançá-lo. “Olha, a gente está tentando fazer as coisas da melhor maneira possível. Estamos tentando amenizar os erros, porque são muitos.” Insisto na mesma pergunta, se o MP realmente está por trás desse cadastro. “Não posso ficar comentando muito isso”. “Não pode porque não sabe ou porque sabe que o MP não está por trás?”, continuei. “Porque eu sei que não.”, concluiu.

Voltei para a reunião e um ponto crítico havia se instalado. O preconceito com os atingidos de Bento Rodrigues em Mariana era a pauta e uma mulher de cabelo liso bem escuro, sentada na segunda fileira, estava com o microfone na mão e o dedo em riste. “A Samarco precisa tomar alguma providência. Nós somos chamados de vagabundos aqui todos os dias, as pessoas nos olham feio. Outro dia ouvi de um funcionário da Samarco ‘tomara que essa empresa quebre e esse povo de Bento vá todo pra rua’. A gente não aguenta mais, não podemos sair de casa, não temos lazer, nossos filhos não podem ir pra rua”. Olhou para uma câmera que estava gravando tudo e disse: “não sei pra onde esse vídeo vai, mas pelo amor de deus alguém me escute, alguém toma uma providência porque do jeito que está não está dando”, disse com a voz firme.

Além das mais de duas dezenas de funcionários da Samarco, estavam presentes um fotógrafo profissional, que ficava perambulando clicando todos os presentes e um cinegrafista gravando o encontro na íntegra. Num telão eram projetados slides da Fundação Renova, pouco ou nada explicativos.

Um funcionário da Samarco, barriga saliente e bigode cultivado, pegou o microfone e tentou amenizar o clima. “Nós vamos colocar uns informativos no jornal da Samarco, estamos tentando tomar algumas providências…”. Nem bem terminou seu ponto e uma mulher magra, cabelos pintados e trajando um blazer claro levantou do meio da plateia e pegou o microfone.

“Olha, não dá pra ficar lá atrás ouvindo isso. Vocês não tem noção do que está acontecendo, não é jornalzinho que vai mudar nada. Aliás ele só atrapalha. Os moradores de Mariana estão fazendo abaixo-assinado para retirar as pessoas de Bento da cidade. As crianças na escola são humilhadas, pais assinaram um documento pedindo a saída das crianças de Bento. Vocês têm milhões, investem milhões em propaganda e não fazem nada pra isso acabar. Tomem alguma providência enquanto é tempo. Ou vão esperar morrer alguém?”. Foi aplaudida pelos presentes.

Com pouco jogo de cintura, Galib Chaim tentou responder às duras críticas. Disse que “é inadmissível a hostilidade” e que vai trabalhar pra que isso seja sanado. Em todo o momento, por orientação ou desconhecimento, os funcionários da empresa e da Fundação chamavam os atos preconceituosos de “hostilidade”.

Prostesto de comerciante em Barra Longa um ano após o crime – Foto: Alex Tajra

A situação se acalmou e outra pauta começou a ser discutida: a anulação da homologação do acordo entre União, Samarco e os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Um homem recostado em uma pilastra, porém, interrompeu o presidente Roberto Waack: “Só para as pessoas terem conhecimento, as empreiteiras da Samarco estão mexendo lá em Bento. Eu fui lá pra lá hoje e vi tudo, levei até uma testemunha. A Justiça proibiu a Samarco de operar por causa das licenças, mas as empreiteiras deles continuam em Bento. E estão construindo um dique lá, já até abriram estradas.”

A acusação partiu de Paulo César, homem baixinho de barba rala e olhos claros. “Morava em Bento fazia 24 anos, sou de Mariana, mas adotei aquela cidade como minha casa. Perdi um monte de coisa lá, uma delas um terreno meu com 1500 pés de bananeira e 600 pés de mexirica”, contou. “Vou todos os dias pro Bento pra ver o que está acontecendo, e a Skava (mineradora Skava Minas) tá trabalhando lá faz tempo”.

O dique S4, citado por Paulo, é alvo de muita discussão desde julho de 2016. Na época, a Samarco pretendia construir uma nova estrutura de barragem para evitar o escoamento da lama nos dias de chuva. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), porém, proibiu a construção do dique por temer a destruição da memória do povo de Bento Rodrigues. Além disso, diversos especialistas ouvidos pelo Ministério Público de Minas Gerais e pelo Conselho de Patrimônio Cultural de Mariana já afirmaram que um dique pode aumentar a possibilidade de novos alagamentos em Bento Rodrigues e impossibilitar por completo a recuperação da área.

A questão do dique no município mineiro fez surgir uma rusga entre os poderes executivo e judiciário. No fim de setembro, o Governo de Minas Gerais, comandado por Fernando Pimentel (PT), autorizou via decreto a construção do dique pela Samarco. A decisão gerou um embate entre Governo do Estado e Ministério Público de Minas Gerais, que entrou com uma ação civil pública uma semana depois, pedindo uma perícia específica no local. Já para os atingidos, a construção de mais uma montanha de rejeitos em cima dos destroços de Bento Rodrigues, além de desrespeitar a história do povoado, envolve uma teoria ainda muito repetida por alguns de seus moradores.

Além de Paulo César, outros presentes relataram que a Samarco já tentava comprar alguns terrenos da cidade para a construção de uma nova barragem bem antes do rompimento. Desde 2011, a mineradora fazia reuniões para tentar convencer os habitantes a aceitar o novo empreendimento, dando como contrapartida a reforma da estrada que liga Bento Rodrigues à Mariana.

O tema foi completamente ignorado pela diretoria da Fundação Renova, que cumpriu uma função de mestre de cerimônias na reunião. O útlimo tema debatido seria o acordão, e Roberto Waack respondeu ao questionamento dos atingidos de forma breve e genérica, deixando muitas dúvidas entre os ali presentes. “O acordo está valendo independente de homologação, foi um acordo firmado entre as partes e vai ser cumprido. Não tem nada a ver esse negócio da Justiça, às vezes a mídia fala coisas que não são verdade.”

Ao fim da declaração, levantei o braço. O microfone passou de mão em mão e tomei a palavra. “O senhor sabe que esse acordo pode ser anulado pela Justiça Federal, certo? A homologação foi anulada até segunda ordem, isso foi dito por um juiz federal”. Roberto respondeu calmamente: “Na verdade essa homologação não faz diferença alguma. Nós vamos continuar com o acordo porque isso que foi combinado. É como se fosse uma nota promissória, assina e não dá pra voltar atrás. Por isso que eu falo que esse acordo não tem como voltar atrás”, disse.

Receoso com a resposta de Waack, conversei por telefone com alguns advogados da área cível, logo depois da reunião, relatei as palavras do presidente da Fundação e sua sábia comparação de uma nota promissória com um acordo daquele porte. “Eles estão arriscando tudo, estão colocando tudo que foi feito até agora em cheque. Se a Justiça Federal decidir que o acordo é inválido amanhã, o acordo é inválido e ele vai ter de se adaptar a isso”, me disse um advogado que preferiu não se identificar.

As últimas indagações da noite foram em relação aos terrenos escolhidos pelas pessoas para a reconstrução das cidades destruídas. O de Bento Rodrigues já havia sido escolhido em votação, e o de Paracatu de Baixo estava prestes a ser designado. Os atingidos queriam saber quando o terreno seria adquirido pela Samarco. “Eu garanto a vocês, eu posso garantir pra vocês, falta muito pouco pra estar tudo certo. Já compramos e já mandamos os documentos”, disse um funcionário da mineradora. Um homem idoso de voz rouca levantou e interrompeu: “Fazem meses que vocês estão falando isso, repetem isso toda hora e nada é feito. Não aguentamos mais, queremos saber onde vamos morar”.

Esperei o fim da reunião para tentar abordar o presidente da Fundação Renova. Muitos moradores o cercaram, cumprimentaram-no e fizeram vários pedidos. Depois de uns minutos olhando de lado, consegui conversar com Waak. Dois assessores da Samarco ficaram ao lado dele e me comiam com os olhos, um deles, de barba e cabelos ruivos, registrava com um gravador tudo o que eu perguntava. Questionei se ele já esteve em alguma das áreas afetadas pela lama. “Só tinha ido uma vez para Governador Valadares, mas fui hoje de novo. Aqui na região ainda não vi os lugares”, disse.

“E o senhor não acha que existe um conflito de interesses já que o conselho da Fundação, que vai tomar as decisões, é formado por pessoas da Vale e do setor privado?”, perguntei. “Acho que não, precisamos de competência, é o que mais importa. O conflito de interesses tem que ser resolvido pelo conselho. Temos de trabalhar em várias instâncias dentro da nossa instituição para estarmos atentos o tempo inteiro para esses possíveis conflitos”. Sem entender bem o que ele quis dizer, me coube compreender a necessidade de tantos assessores ao seu lado.

 

Alex Tajra é jornalista 

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens escrito em 2016 sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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