Ilustração: John Ledger

pediu para a gente ir com ele, ninguém botava muita fé no que falava.

Não era nada sério, tipo o cara não tem palavra na quebrada, era mais uma coisa assim, como ele brincava muito, pouca coisa era tida como verdade.

Não sabia bem o que queria da vida, não que isso também importasse, afinal não faria diferença se ele quisesse ter outros planos, sua vida era mais ou menos como a dos outros moradores, parecida assim como uma folha carregada pelo vento.

Já tinha três filhos, o nego na frente do nome não era bem o efeito da sua cor, era um apelido mais por falta de criatividade, afinal tantos, pernambucos, cearás, que não tinha mais vaga pra ninguém.

Era estranho sim o jeito que se vestia, chapéu de couro, botas longas, sempre com a camisa aberta e de bermuda jeans, quem olhasse de longe já veria que aquele homem não se olhava no espelho, muito menos escolhia roupa para usar.

A casa perto do córrego também tinha um ar de abandono, os filhos viviam brincando no escadão que dava acesso à Cohab. Subiam e desciam correndo, com um risco tremendo de caírem dentro do córrego.

De uns tempos pra cá começou a aplicar nesse carro véio, um Corcel cortado na traseira, adaptado tipo caminhão, com um monte de madeira servindo de baú.

Dentro dele tinha tudo, quando fazia bico de pedreiro carregava, pá, enxada, andaime. Quando decidia catar papelão era outros quinhentos. Quem nunca viu Nêgo J. molhando a imensa pilha para pesar mais.

Como morava próximo à Cohab sempre olhava para o morro cheio de lixo, pensava que podia ser uma floresta, até o dia que pirou o cabeção e foi lá com uma enxada cavar e plantar.

Muita gente gozou desse homem nessa época, tava maluco, fazer plantação em beira de favela era coisa de desocupado, mas Nêgo J. nunca ligou pros outros, se não teria que mudar sua maneira de ver as coisas, e já se achava velho pra isso.

E num é que o barranco virou uma plantação bonita, chamada por ele de “meu sítio” e quando ficou pronta que ele parou de envolver a gente nesses passeios onde sempre a gente terminava em frente de um terreno cheio de mato, onde ele falava que um dia ia comprar.

Mas nóis é tudo da quebrada, e sabe que história bonita não dura, e o “sítio” de Nêgo J. virou ponto pra maconheiro, pra catar mulher e mais um monte de besteira que o homem nunca aprovou. Acabou foi abandonando o lugar, cheio de mato que ta lá agora.

Foi mais legal a época da mobilete, o bicho fez uma obra grande, chapiscou parede até a mão engrossar e com esse dinheiro sacou uma mobilete, a bicha fazia um barulho monstro, parecia mais um trator, quem chegasse naquela hora, antes dele soltar a danada, diria que aquilo tudo iria pra os ares, mas em vez disso a arrancada da bicha jogava pedregulho pra traz.

E foi com ela que foi pra Campinas, Juquitiba, Itapecerica da Serra, o homem varava tudo que é verde, quando podia lá ia ele, com a camisa aberta, uma mochila véia nas costas com duas garrafas de refrigerante cheias de gasolina e muita coragem, ou seja lá o que era aquilo.

Foi muito engraçado o dia que chegou todo rasgado, disse que um caminhão tentou matar o sonho dele de nadar na cachoeira da biqueira.

Aquele homem não podia só ficar nos bares como todo mundo? jogando seu bilhar? tomando sua pinguinha? não! Em vez disso tinha que tentar ser diferente, tinha que pensar tanto em planta.

E porque se gostava da natureza tanto assim, trabalhava de pedreiro, jogando cimento em tudo que é lugar?

Acontece que Nêgo J. começou a ficar doente. Todo mundo vinha me falar que o homem tava em depressão, na favela pra quem não sabe, depressão é sinônimo de vagabundagem, ou até de frescura mesmo.

Eu como todo mundo, só ouvi. É tanto problema que agente acaba num se envolvendo em tudo, e além do mais ele me devia uma obra que nunca terminou, fato que depois perdoei, acabei falando com ele mais umas vezes, ainda mais quando estava mamado.

Também, quem me culparia? O homem já chegava contando piada, dizendo isso e aquilo de um jeito que contaminava todo mundo, a favela podia ta sinistra, que se iluminava quando ele chegava já fazendo graça.

Tem gente que é assim mesmo, vive de palhaçada que é pra esconder alguma tristeza embutida.

Tem um lugar aqui que chama parque Santo Dias, um monte de gente corre nele, outros levam as crianças pra dar um rolê. Foi posto esse nome dedicado a esse cara que lutou por algo de valor, pelo menos é o que todo mundo fala.

Mas o fato é que todo mundo aqui chama o lugar de “mata”, foi no meio da mata, entre as árvores mais altas, que Nêgo J. se enforcou.

Diz o pessoal aí que juntou tudo né? Desemprego, depressão, esses negócio tudo junto.

Pensando bem não era frescura nem vagabundagem.

Com tanta vastidão de verde nesse pais, tudo aí parado, mas cheio de dono, até que não era querer muito ter assim um pedacinho de terra com verde, pra ele de repente plantar um pouco de esperança.

Dedicado a Nêgo Jaime.

Ferréz é escritor e fundador da 1DASUL. Ligado ao movimento Hip-Hop, é autor dos livros Capão Pecado (Editora Planeta), Manual Prático do Ódio (Editora Planeta), Ninguém é Inocente em São Paulo (Editora Objetiva), entre outros.

Este conto é parte do livro Os Ricos Também Morrem (Editora Planeta)

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