Nas últimas semanas estive em mais de cinco presídios. Foi uma das experiências mais marcantes da minha vida. Acredito que terei de viver mais 20 anos para presenciar novamente uma situação tão assustadora. Posso afirmar categoricamente que o que testemunhei seria capaz de fazer muita gente ranger os dentes e pessoas inertes repensarem sua omissão. Confesso que, quando tive a ideia do texto, pretendia fazer uma resenha acadêmica, sem o apelo da primeira pessoa. Mas não teve jeito, a primeira pessoa tomou as rédeas e o viés acadêmico e jornalístico tomou seu devido rumo.

Este texto é antes de tudo um grito de socorro.

Foi em um presídio na cidade de Assis que vivi um episódio no mínimo intrigante. A penitenciária desenvolve um projeto que tem como objetivo promover ‘ação terapêutica em grupo’, na qual os presos falam do vício por drogas abertamente, com o acompanhamento de uma psicóloga e um religioso. Nesse dia em particular, abriram as portas do presídio para alguns representantes da comunidade local. Para tanto, prepararam uma abertura com teatro de fantoches. O público, composto por mais ou menos uns 80 homens, ria como crianças com aqueles bonecos, um simples teatro de fantoches. Mais de 80 presos em coro gargalhavam das artimanhas de dois bonecos manipulados, como se vivessem de novo ou pela primeira vez uma infância que lhes foi negada.

O sistema prisional brasileiro configura praticamente uma rede de campos de concentração de pretos, pardos, mulatos, pobres e dependentes químicos, onde a lei do mais forte é a única que realmente funciona. Todos sabem, todos imaginam, todos lamentam, todos excluem, todos fingem que o problema não é seu. A barbárie institucionalizada é apoiada pelas grandes mídias e por especialistas com visões pouco profundas, que vivem multiplicando a velha máxima: “Bandido bom é bandido morto”. Como se não tivessem culpa, como se sua inércia não contribuísse para tal situação. Bandido morto quando é filho da vizinha, os deles, com certeza, legitimariam e dariam uma segunda chance.

O ódio é alimentado por uma sociedade excludente, que subjuga, condena, e depois reclama do aumento da criminalidade e da eterna crise em que vivemos. A escola falhou, a sociedade, a igreja, a família e a oligarquia estruturada, desde a nossa artesanal colonização, também. O velho ranço escravocrata permanece até os nossos dias.

Continuem assim, protelando suas responsabilidades. Como se os presos fossem ficar trancados a vida toda, como se um dia eles não fossem sair de lá e ameaçar suas vidas de pequenos burgueses. Um país onde a tornozeleira eletrônica, prisão domiciliar e afins, são reservados apenas aos membros da dita elite que, quando roubam, o único castigo que recebem é ir para o cantinho da disciplina das suas luxuosas mansões. É uma justiça distorcida, só para gringo ver. Justiça politizada, arcaica, e estruturada em leis, cuja aplicação depende da conta bancária. A sociedade precisa encarar este problema de frente. Reitero que, se não por eles, os ditos condenados, que seja por seus filhos e netos que herdarão este país. Apelo sim para a família, se assim se faz necessário, nesta sociedade pouco pensante, que só olha para o próprio umbigo.

Mais de 70% dos presos estão lá por envolvimento com o tráfico e muitas vezes por serem dependentes químicos. Uma epidemia que assola o país, quando os doentes com pedigree são levados às clínicas de recuperação, enquanto os outros aumentam as estatísticas na cadeia.

O que escutei de uma boa parcela desses excluídos foram verdadeiros gritos de socorro de dentro do cárcere. As instituições são omissas e não prestam assistência psicológica e social adequada. A situação somente é amenizada graças à dedicação de abnegados heróis anônimos, que tive o grande prazer de conhecer, tais como psicólogos, padres, pastores e assistentes sociais. Pergunto-me então: cadê a nossa “elite”, os empresários, a dita hierarquia acadêmica deste país, que não fazem nada?

Ao andar pela Cracolândia em São Paulo, um dos grandes berços desses delitos, me deparei com cenários análogos aos campos de leprosos, todos ali unidos por um único fio condutor: o crack. Juntos incomodam e acabam se tornando um cartão postal deste país, jogados às traças por causa de meia dúzia de aproveitadores, que ainda hoje vivem de títulos, foro privilegiado e relacionamentos.

A dita oligarquia, prostituída no seu berço esplêndido, finge que não enxerga. Sentem-se satisfeitos por entenderem que fazem a sua parte, incluindo, por exemplo, a suposta libertação dos escravos, que na verdade foram atirados na rua, sem estrutura, sem trabalho, sem nada. E essa problemática permanece até hoje, manifestando-se especialmente nas cadeias e favelas. São incapazes de empreender a inclusão cultural, a começar pelos seus empregados, e de transmitir o conhecimento adquirido em suas escolas privilegiadas.

Isso mesmo, continuem assim, enfiando a cabeça na areia como avestruzes. A Europa é um exemplo vivo da ação das leis da Natureza, que age como um grande bumerangue. Os emigrantes, outrora escravizados, hoje entram em seu território via terra e mar. É o êxodo dos ex-escravos. Nada passa impune, a natureza cobra. Se não acreditam no revés da natureza, pois que estruturem seus conhecimentos através dos livros de história. Haverá o dia em que essas caveiras sairão de seus armários da sala de estar. Ou tomamos alguma atitude agora, ou o verniz de nossas farsas escorrerá por cima das nossas maquiagens.

Senhores, façamos alguma coisa! Precisamos rever, entre tantas outras políticas, as leis antidrogas, a proibição que incentiva o crime, as aulas de prevenção nas escolas, a inclusão cultural e a cultura da corrupção. Onde não temos justiça, educação, segurança e cultura, o poder paralelo toma conta.

Claudia Canto é jornalista, escritora e apresentadora do programa Mergulho na Vida no Youtube. 

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