obarulho do helicóptero era ensurdecedor, João nunca ouvira algo parecido. Tomando banho, após chegar de um dia de trabalho na roça, ouvia a rajada das hélices cortando o ar. O alto ruído na região pacata em que viviam suscitava um princípio de nervosismo nele e em sua esposa, que não conseguiam entender o que estava acontecendo. Passava das cinco horas da tarde e a penumbra já dava as caras no pequeno povoado de Paracatu de Baixo, na zona da mata de Minas Gerais.

Saiu do chuveiro às pressas e sentiu um leve tremor em sua casa. “Puta que pariu!”, gritou de desespero. “Nunca tinha ouvido um barulho daqueles, não sei explicar, era um negócio assustador”, me disse João numa manhã seca de inverno, alguns meses após a queda da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues. De polo listrada amarrotada e um boné que se equilibrava em sua cabeça, João Eloi da Silva conversava enquanto perambulava pela casa, mostrando os detalhes da estrutura que construiu há mais de trinta e cinco anos.

João relatou que, por um momento, achou que alguma coisa tivesse explodido, tamanho o estrondo ouvido por toda comunidade local. Uma cachoeira da região, conhecida como cachoeira da Maria Corin, nome da proprietária do terreno, ficou entupida com os destroços trazidos pela lama da barragem. Eram pedaços enormes de madeira e troncos de árvore, além de toneladas de rejeitos de ferro. Quando desentupiu, um estampido seco ecoou nos ouvidos de todos.

“Um monte de carros e ônibus começou a chegar. As pessoas batendo nas portas mandando todo mundo sair de casa. Quando ouvi o estouro, corri para o morro primeiro. Depois, mais calmo, entrei num desses ônibus que levou a gente para a Arena Mariana”, disse, revelando que soube apenas algumas horas depois que a barragem havia cedido e matado 20 pessoas.

O grande ginásio da cidade histórica se transformou no lar de milhares de desabrigados. Moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Cima, Paracatu de Baixo, Gesteira, e outros povoados dividiam a quadra poliesportiva. “No começo ninguém entendeu nada que estava acontecendo. A gente sabia que a barragem tinha estourado, mas não que tudo tinha sido levado pela lama”, contou.

As edificações de Paracatu estão ainda de pé. Colchões, camas, televisores, máquinas de lavar roupas, cadernos escolares, livros. Tudo está lá, perfeitamente preservado, como um museu da destruição – Foto: Alex Tajra

No dia seguinte à sua chegada em Mariana, João e a família foram realocados pela Samarco, mineradora responsável pela barragem, em um hotel da cidade, onde passaram 45 dias. “Eu não gostei daquilo não. Não gosto de cidade, sou da roça. Minhas coisas tão aqui, eu trabalho com coisas da roça, não estava me sentindo bem”, disse exalando o desânimo que sentiu naqueles dias. “Saía pra procurar emprego de manhã e não tinha, não sou homem de ficar sem trabalhar, não queria mais aquilo. Só televisão e problema o dia inteiro”.

A empresa começou então a reformar e alugar casas de Mariana para os moradores das comunidades atingidas. “Não aguentei três dias naquela casa, aquilo me deixou triste. Não sei como as pessoas da cidade conseguem viver. É comer, dormir e assistir televisão. Comer, dormir e assistir televisão. Só isso o dia inteiro. Isso não é vida não. Peguei minhas coisas e falei pra minha esposa e pros meus filhos ‘vou voltar pra casa, meu lugar é a roça, não é aqui não'”.

De início a mineradora estava sendo rígida em relação às áreas atingidas. Não queria deixar as pessoas voltarem para suas casas. O caso de João não foi o único; muitas famílias acabaram separadas por que parte de seus integrantes não se adaptou à cidade. A mudança da roça para o asfalto envolvia não só uma questão material, mas um sentimento em relação à terra, uma identidade e um modo de vida a serem preservados. Conforme João me relatou, tudo era mais caro na cidade e de pior qualidade, e “quem é da roça não consegue aceitar isso”.

Os Paracatus, de Baixo e de Cima, configuram um único distrito pertencente ao município de Mariana. Foi a segunda comunidade a ser atingida depois de Bento Rodrigues. Onde antes viviam 140 famílias que se amparavam, basicamente, na agricultura e criação de animais, hoje está fincada no mapa uma cidade fantasma. As edificações estão ainda de pé. Colchões, camas, televisores, máquinas de lavar roupas, cadernos escolares, livros. Tudo está lá, perfeitamente preservado, como um museu da destruição.

Depois de pressionar a empresa, João conseguiu voltar para a casa. Foi obrigado a assinar um documento no qual assumia todo o risco caso qualquer coisa acontecesse a ele. “Cheguei em casa e tava tudo trincado, a terra tremeu tanto na passagem da lama que as telhas saíram do lugar”, disse, mostrando a cozinha de sua casa e apontando para as paredes trincadas e o telhado com frestas onde penetravam abruptamente os raios solares.

Apesar de ter se separado da família, a decisão de João foi tomada em consenso com a esposa, que entendeu a necessidade do marido de continuar sua vida na roça. A mulher já estava adaptada à Mariana e não queria voltar a viver numa cidade parcialmente destruída. Para manter a estrutura familiar, ela e os filhos viajam para Paracatu todos os finais de semana, tentando manter a rotina anterior ao crime da Samarco. A concordância familiar nem sempre era a regra. Saci ouviu outros relatos, preservados por decisão de seus interlocutores, de casais que se desentenderam por conta da migração forçada para a cidade, e o resultado foi o divórcio.

Além da casa, que terá de ser reformada, João perdeu um barzinho na cidade que costumava complementar a renda básica do agricultor. No pequeno povoado, o botequim era uma das poucas válvulas de escape para os trabalhadores da roça. “Todo mundo passava lá pra tomar uma cachacinha, uma cervejinha. Era um bar conhecido, as pessoas iam muito. Agora perdi tudo, foi engolido pela lama”, contou com certa lamúria.

Durante nossa conversa, João esfregava e enxugava os olhos a todo o momento. Lacrimejava muito, dava pra ver as gotas escorrendo em suas bochechas. Era o efeito da poeira da lama, um dos rastros imensuráveis deixados pelo rompimento da barragem. “Desci ali na rua agora pouco e não para de coçar isso aqui. É essa poeira aí, que eles falam que nela não tem nada.”

 

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens escrito em 2016 sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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