De regata branca, deixando transparcer uma cicatriz no ombro direito e parte da barriga, Fafá era abafado, em intervalos rigorosos, por caminhões de oito eixos que passavam em frente a sua casa. “Desde que caiu a barragem é assim, eles passam aqui toda hora. Caminhão com pedras, caminhão pipa jogando água. Isso é o dia inteiro, em dois turnos, de dia e de madrugada”, conta. Passa o dedo em cima da mesa em que estamos sentados e mostra a imundez colada a pele. “Eles passam e jogam poeira pra todo lado. Limpei isso aqui agora pouco e olha como já tá.”

Sua barba cultivada é tangente aos fios de cabelo apanhados num pequeno rabo de cavalo. Músico, Flávio Márcio Ferreira de Freitas é conhecido na cidade por sua alcunha, Fafá da Barra, resquício dos tempos que tentava a carreira artística em Belo Horizonte. Mudou-se para a capital mineira aos vinte e poucos anos durante a Ditadura Militar, se arranjando no bairro boêmio de Santa Tereza, reduto embrionário de nomes como Clube da Esquina e Sepultura.

“Toquei com muita gente boa, era um período de muita cultura em BH, estavam estourando várias bandas e cantores. Mas viver de música não é fácil, né?”, diz, fumando um cigarro de palha que não parava aceso. Depois de muitos festivais, botecos e de até ser censurado pelo Dops (Departamento de Ordem Política e Social) em 1974, retornou a Barra Longa em 1980.

Trinta e cinco anos depois, submergiu-se em incertezas com a queda da barragem do Fundão, em Mariana. “As pessoas não tinham a menor noção do que podia acontecer. Todo mundo sabia que tinha barragem, que tinha mineração. Mas ninguém sabia que a lama podia vir e destruir tudo. Mesmo no dia em que tudo aconteceu, eu vim pra casa dormir normalmente, pensei que o rio só ia transbordar um pouco”, diz, prendendo a voz com um trago.

Quando acordou no dia 6 de novembro, a “pacata” Barra Longa, como Fafá repete a esmo, já estava tomada por caminhões, tratores, ônibus e centenas de funcionários da Samarco. Poucos que foram avisados previamente retiraram seus pertences dos quintais. A vasta maioria da cidade dormiu e acordou com quintais, plantações, carros, motos e outros bens imersos em rejeitos.

No dia seco de outubro em que conversávamos, as passagens dos caminhões pela rua de Fafá eram intercaladas por um carro de som, contratado pela mineradora, que anunciava: “Atenção moradores de Barra Longa, no próximo dia 28 faremos uma simulação com a nova sirene implantada na cidade. Por favor, fiquem todos atentos. Com essa simulação queremos fazer algumas avaliações, como o alcance da sirene. Qualquer dúvida por favor procurem a Samarco ou a Fundação Renova para esclarecimentos”. “Isso aí, ó”, comenta Fafá, com o som do carro ainda ricocheteando, “eles tão com medo de cair a outra barragem, tão fazendo um plano de fuga, mas não vai dar certo”.

Até novembro de 2016, um ano depois da queda da barragem do Fundão, a cidade de Barra Longa, assim como outras da Zona da Mata, não possuía um plano de fuga formalizado ou direcionamento emergencial caso outras barragens sucumbissem. Logo após a queda do Fundão, Defesa Civil, Samarco e a Prefeitura da cidade se digladiaram pela responsabilidade do plano de fuga.

O projeto saiu do papel quando constataram que as barragens de Germano e Santarém, vizinhas do Fundão em outro complexo de mineração, também poderiam desabar. “O plano que eles fizeram é levar todo mundo para uma capela no topo do morro, e ficar lá. Só que o lugar não consegue receber nem mil pessoas direito, imagina cinco, seis mil pessoas indo pra lá.”

Quando os caminhões liberavam o silêncio, um choro estridente ecoava da casa de Fafá. Questiono se é seu filho e o porquê do esperneio. “É meu neto. Mas você perguntou o que mudou na minha vida depois da lama, é isso. Tudo mudou, tudo foi alterado. Por que ele está chorando? Por que não tem lugar pra brincar, a praça foi destruída, não pode sair na rua que corre o risco de ficar doente com a poeira. A criança começa a ficar estressada dentro de casa, grita, faz escândalo. Criança tem que brincar na rua, tem que sair de casa.”

Os efeitos colaterais da lama na vida de Fafá e de sua esposa, Maria Angélica, começaram nas primeiras semanas de novembro, dias depois da barragem se romper. Até então com poucos casos de doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, Barra Longa conviveu com uma epidemia de dengue após a queda do Fundão, com centenas de casos suspeitos e dezenas confirmados. A lama matou boa parte da fauna da região, incluindo os predadores naturais do mosquito, como sapos e lagartos. Algumas espécies de peixes que circulavam no rio que corta a cidade também faziam a predação das larvas do mosquito.

Fafá, Angélica e a filha Débora, após a constatação de manchas vermelhas e febre elevada, foram internados no pequeno hospital de Barra Longa com quadro de suspeita de dengue. “Até essa lama chegar a gente tinha um, dois, três casos de dengue no máximo. Esse ano, depois que tudo aconteceu, tivemos mais de 400 casos suspeitos e 180 confirmados. A gente nunca tinha passado por isso aqui”, comenta Fafá. A Secretaria de Saúde de Barra Longa confirmou à reportagem os dados suscitados pelo músico. Enquanto em 2015 houve apenas dois casos confirmados da doença, em 2016 o número saltou para 128 casos confirmados e centenas de suspeitas.

A cidade de Ponte Nova, pouco atingida pela lama e a cerca de 40 quilômetros de Barra Longa, também registrou aumento exponencial de dengue. Em 2014, segundo dados dos Setor de Epidemiologia da Secretaria Municipal de Saúde/Semsa, foram 46 casos e 12 confirmações; em 2015, os mesmos 46 casos e 11 confirmações. Depois da lama, entre janeiro e fevereiro de 2016, foram 181 confirmações de dengue e uma média de 3,6 reclamações por dia na cidade.

Depois da queda da barragem, Fafá também passou a reclamar da calvície. Músico, o barralonguense preservou os longos fios herdados da juventude boêmia. Agora, é possível notar algumas falhas no seu couro cabeludo, e o rabo de cavalo foi reduzido a um pequeno coque entre as orelhas. “Desde garoto eu uso cabelo grande e barba. Depois que aconteceu tudo isso, ele embolava, caía muito, não dava pra pentear. Isso é o estresse, é muita coisa na cabeça da gente. Tive que fazer tratamento químico e tudo, passava a mão na cabeça pra coçar e saia uns tufos.”

Tal qual outros moradores, Fafá coleciona entraves com a Samarco. Seu único contato com a empresa foi durante as reuniões realizadas entre o Movimento dos Atingidos por Barragens e o Ministério Público. Assim como parte considerável dos atingidos de Barra Longa, o músico não foi agraciado com o cartão-auxílio fornecido pela mineradora, que paga a um pequeno contingente de pessoas um salário mínimo e uma cesta básico por mês.

“Desde novembro eu participo de tudo, sou um dos que mais atuo. Muita gente ganhou esse cartão, mas a maioria ficou de fora. Eles criaram um critério que ninguém atendeu até hoje, distribuíram esses cartões a gosto deles. A cidade inteira foi atingida”.

Enquanto conversávamos, a Maria Angélica varria a casa e tentava jogar a poeira de volta à rua. Quem anda na cidade observa uma regra: em frente as casas, é comum ver as pessoas varrendo e enxaguando as entradas das residências. “Todo dia a gente varre isso e a poeira volta rapidinho. Você gasta mais água, você gasta mais material de limpeza, gasta muito com medicamentos. Não temos mais lazer aqui, acabou tudo. O que você faz dentro de um canteiro de obras? Só escuta barulho, vê problemas e ouve problemas.”

A filha Débora, de 21 anos, passa por constrangimentos menos suscetíveis ao esquecimento que as doenças e a sujeira. 600 trabalhadores da Samarco e suas terceirizadas se estabeleceram em Barra Longa após a queda da barragem. A intrusão de centenas de homens fez com que os casos de assédio sexual e desrespeito crescessem em ritmo acelerado.

“Eu não saio mais de casa usando shorts”, sentencia Débora.

Há alguns meses estudantes de medicina da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) foram a Barra Longa a fim de desenvolver um projeto de estudo sobre o estado de saúde das pessoas. Logo quando entraram na cidade, as mulheres do grupo foram recepcionadas por assovios e ofensas por parte dos funcionários da Samarco. A reunião que seria sobre saúde passou a tratar de assédio, relacionamentos abusivos e outros problemas que as mulheres de Barra Longa vêm enfrentando. Débora, juntamente com outras mulheres e por influência das estudantes da UFOP, criou um grupo no WhatsApp para relatar denúncias e marcar reuniões.

“Eu ainda não fui na Samarco porque não tive tempo, está tudo muito corrido. Mas algumas amigas minhas, inclusiva a mãe de uma, foi reclamar no escritório da empresa. Sempre respondem a mesma coisa: ‘vamos falar para eles se comportarem e não tratarem mal os moradores’. Até agora, não mudou muita coisa”, diz Débora. “Quando a gente criou o grupo, queríamos que as mulheres se unissem pra enfrentar esses problemas. No momento atual, precisamos falar sobre doenças sexuais, relacionamentos abusivos e problemas que estão relacionados às mulheres.”

Quando visitei Barra Longa pela primeira vez, em agosto de 2016, parte de uma reunião com o Ministério Público Federal teve como assunto o assédio sofrido pelas mulheres de Barra Longa. Ingrid, estudante da Universidade Federal do Paraná que fazia trabalho voluntário junto aos atingidos, relatou que sofria diariamente com o assédio dos funcionários da Samarco. Um deles dera um “tapa na bunda” – conforme seu relato – “no meio da rua”.

“Eles são assim mesmo, a gente sai na rua e ficam uns de um lado da calçada e outros do outro lado, gritando, mexendo.”, diz Débora.

Acabando de fumar a ponta do cigarro de palha, no limiar de queimar os dedos, Fafá brada, interrompendo a filha: “Eles mesmos estão gerenciando o próprio crime que cometeram. Entregaram a chave da cadeia pro bandido e falaram: ‘entra e sai a hora que você quiser”.

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados” (2016), conjunto de reportagens sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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