madrugada de quinta para sexta-feira. O relógio já marcava um novo dia quando o celular de Papagaio começa a tocar incessantemente. Ele reluta, sonolento, mas responde após reconhecer o número. “Pronto”, atende, meio puto de sono. “Estou te esperando aqui na frente da sua casa, vem logo”. Papagaio não entende bem a urgência, titubeia e ouve do outro lado da linha: “Vem logo que estou aqui fora”.

O desespero logo seria entendido e absorvido. Aquela sexta não era só mais um dia, só mais vinte e quatro horas ordinárias na vida dos sete mil habitantes de Barra Longa, cidade a 170 quilômetros de Belo Horizonte. As palavras corridas vindas do outro lado eram do prefeito da cidade, Fernando José Carneiro, o Zé de Teca. Papagaio se sacudiu e vestiu o que viu na frente. Antes de sair, pegou as chaves de seu Fiat Uno prateado.

Zé de Teca estipulou a missão de Papagaio. O carro serviria de refúgio para documentos e papéis importantes da escola infantil do município. Antes disso, deveria tentar preservar os computadores da instituição. Junto com moradores, funcionários da escola e da prefeitura, colocou os monitores e CPUs em cima de mesas e armários. Acabado o serviço, e os ponteiros ultrapassando as duas da manhã, foi conferir com uma lanterna a situação do Rio do Carmo, que corta a pequena cidade. A água turva anunciava a chegada da lama.

Algumas horas depois os moradores perceberiam que toda a movimentação fora inútil. Milhões de metros cúbicos de rejeitos do minério de ferro despencaram no Rio Doce- a barragem do Fundão, uma montanha de rejeitos de minério de ferro de propriedade da mineradora Samarco, havia se rompido. Os moradores de mais de 40 cidades e povoados, entre elas a pacata Barra Longa, viram suas casas serem moídas pela lama numa manhã. Os computadores da Escola Municipal Luiz Melo Viana Sobrinho, alvo da tentativa heroica de Papagaio, foram soterrados.

Sérgio Fábio do Carmo, conhecido como Serginho Papagaio, viu o sol nascer da beira do rio. Viu o passo a passo do estrangulamento do Rio Doce pelos rejeitos. Apesar das frases conciliatórias do prefeito, dizendo que seria apenas uma pequena corrente de lama, não conseguiu se tranquilizar. Chegou em casa por volta das oito da manhã e só conseguiu dormir até as dez.

Corpulento, de voz rouca e jeito carismático, Papagaio me recebeu em sua casa em Barra Longa em agosto de 2016, nove meses depois da queda da barragem. Seria o começo de uma tentativa de documentar as histórias dos atingidos pela lama do Fundão, abandonados pelo poder público, pelos empresários e pelos grandes veículos de imprensa.

Enquanto me contava a história da madrugada lamacenta, Papagaio alisava sua cultivada barbicha. O adereço me chamou atenção, já que nas fotos que vira no Facebook ele aparecia de cara limpa. “Não tiro isso desde que a lama chegou. Fiquei com uma barba bem grande, mas quando fui tirar resolvi deixar uma parte” conta, revelando apreço pela penugem amarelada do queixo. “Alguns ficam falando aí que eu não tirei por causa da lama, para me lembrar. Eu sei lá por quê fiquei”.

Ex-garimpeiro, vendedor ambulante na região das cidades atingidas e agora ativista, Papagaio se emociona ao contar a história do primeiro dia que viu a lama chegar em Barra Longa. Seus olhos marejaram quando falava da saga com o prefeito. Depois de um tempo, vi que chorava em todos os momentos que tocava no assunto.

A marca pintada na árvore retrata a altura que a lama atingiu ao destruir o centro de Barra Longa – Foto: Alex Tajra

depois da queda da barragem, Barra Longa tornou-se um imenso canteiro de obras. São dezenas de pedreiros e engenheiros trabalhando por todo lado; a beira do rio parece uma zona portuária, com caminhões, escavadeiras e outras máquinas pesadas. A cidade foi colonizada pela Samarco, que espalhou homens com rádios de comunicação em dezenas de pontos. Alguns ficam em uma pequena guarita, outros em uma cadeirinha de plástico, outros em pé. Os funcionários da mineradora também seguram placas com “Pare” e “Siga”, orientando o trânsito que se tornou caótico.

Caminhões e tratores passam pela cidade levantando uma poeira densa. A lama que despencou da barragem secou e se transformou numa camada sedimentada por cima do asfalto. É intoxicante quando passam, a garganta fecha, os olhos lacrimejam. Caminhões-pipa abastecem seus tanques nas águas do rio do Carmo, que não foi atingido pela lama – mas é o destino final do esgoto de centenas de pessoas – e passam molhando as ruas para tentar aliviar os efeitos da poeira.

A cidade está mais suja, diz Papagaio. Há uma quantidade desproporcional de lixo nas ruas, principalmente embalagens de produtos. A chegada de centenas de funcionários da Samarco gerou um consumo desenfreado que os lixeiros não conseguem dar conta. Vi um caminhão de lixo abarrotado passando pela rua; a caçamba transbordava e alguns restos ficavam pelo caminho. Ninguém voltava atrás para pegar.

A cidade já foi um simpático amontoado de casinhas e ruas de paralelepípedo. Fundada em 1740, uma das mais antigas do País, começou figurar como parte do município de Mariana em 1911. Depois de idas e vindas, foi declarada independente em 1939, mas ainda pertencente à comarca de Ponte Nova, cidade da Zona da Mata de Minas com pouco mais de 60 mil habitantes.

“Todo mundo que você está vendo aqui trabalhando é da Samarco” me conta Papagaio, apontando o dedo para a rua. Operários retiram lama de um lado, colocam lama no outro, quebram pedras e as colocam na beira do rio como quebra-cabeça. Em geral, não dá pra entender – moradores, prefeitura e as empresas também não sabem dizer – muito bem o que todas essas pessoas estão fazendo.

Quando pergunto se ele conhecia algum dos 19 assassinados pelo crime da Samarco, Papagaio se irrita. “Não foram 19 mortos. Foram pelo menos 20. Uma mulher perdeu seu bebê em Bento Rodrigues. A lama invadiu a casa dela, arremessou ela contra a parede e ela teve um aborto. O menino dela de 8 anos quase morreu afogado, e ela perdeu um outro filho. A Samarco, nem ninguém, reconhece isso. Contrataram até um médico pra falar que ela estava mentindo.”

No meu primeiro dia em Barra Longa tive sorte ao presenciar uma reunião dos moradores, organizada pelo Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), com um procurador do Ministério Público Federal. As reuniões já não aconteciam com a mesma frequência de meses atrás. Pouco depois da queda da barragem, os atingidos se reuniam semanalmente. Depois, os encontros passaram a ser quinzenais. Depois, mensais. Agora, são marcadas de forma esporádica, sem periodicidade definida.

A noite baixara e os moradores se acomodaram numa sala da Câmara Municipal de Barra Longa, ornada com um bizarro e gigantesco quadro de todos os presidentes da Casa. Antes de alcançar sua lotação, o procurador da República em Minas Gerais, Edmundo Antônio Dias, anunciou que a Samarco não iria comparecer à reunião. A empresa havia se comprometido a enviar um representante e desistiu de última hora. Outra metamorfose nos encontros: no começo, a mineradora enviava sempre um emissário, por vezes até mais de um.

“Só pra ter certeza mesmo, tem algum representante da Samarco aqui?”, disse o procurador. Silêncio absoluto. O procurador insistiu mais uma vez, e uma voz foi ouvida na lateral da sala. “Da Samarco, não”, falou baixinho uma mulher de cabelos com mechas loiras e rabo de cavalo. Vestia uma camiseta polo azul marinho com emblema da Herkenhoff & Prates, consultoria que presta serviços para a Samarco. Estava anotando tudo em um caderno. Os moradores que estavam presentes ensaiaram uma vaia. “X9!”, gritou um homem alto e grisalho do fundo. “Você está autorizada a responder pela Samarco?”, perguntou o procurador. “Não.”

Nas primeiras reuniões, me contou Papagaio, o clima era muito tenso entre moradores e representantes da empresa. Muito bate-boca e gritaria, reflexos de um “cinismo sádico” da Samarco, segundo o garimpeiro. “Uma vez, em uma reunião, requisitamos todos os cadastros dos atingidos pelas barragens para entender o que estava sendo feito. O advogado me disse que eles não passariam as informações para ‘preservar a integridade dos atingidos'”, disse Papagaio.

“Aquilo me deixou louco, arranquei o microfone da mão dele e comecei um discurso. ‘Entraram pelas nossas casas pelas portas dos fundos, arrombaram nossas janelas, encheram nossos guarda-roupas de barro, abriram nossas geladeiras, carregaram nossos álbuns de fotografia. O sapatinho da criança que morreu há trinta anos, que a mãe tinha como objeto de adoração, foi carregado pela lama. As lembranças das nossas famílias foram apagadas pela lama. E agora eles dizem que estão preservando a integridade do atingido. Nos estenderam uma escada de barro, quando descemos o primeiro degrau, nos tornamos atingidos. O segundo, flagelados. O terceiro, desabrigados. O quarto, mendigos. E no quinto, começamos a esmolar nossos direitos, nos tornando pedintes de algo que era nosso e nos foi arrancado a força por essas mesmas pessoas que estão dizendo que querem preservar nossa integridade. Mas, se for preciso esmolar, vamos esmolar e não tenho vergonha de fazê-lo para conseguir o cadastro das pessoas e saber para quem eles estão negando'”, discursou.

Em seguida, Papagaio pegou sua agenda e passou em frente aos rostos espantados da procuradora federal presente e do representante da Samarco, como se estivesse suplicando por moedas. No dia seguinte a reunião, a mineradora entregou toda a relação de cadastrados para o MAB.

Naquela quinta-feira, o músico Fafá da Barra, um homem alto, cabelos longos grisalhos e naipe de artista da MPB, abriu a reunião com uma música que compusera:

“Quem poderia imaginar
Que morava logo ali, no nosso quintal
O nosso algoz…o monstro

Atacou sem piedade
Na calada da madrugada, sem deixar aviso
Foi desumano…o monstro

Se veste de anjo e sopra quem o mordeu
Perito em camuflagem, de réu vira juiz

Da ganância veio a morte
De Bento, Barra Longa, até o mar
Cadê meu rio? Mera lembrança…nosso chão

Recorrer a quem, só nos resta a união
Falam de um acordo, essa luta é desigual”

Paradoxalmente, havia certa euforia com a reunião. Em março, um grande acordo da Samarco, Vale do Rio Doce e BHP, as mineradoras responsáveis pela barragem, com a Advocacia-Geral da União (AGU), o Estado de Minas Gerais e o Estado do Espírito Santo foi homologado e previa a reparação de R$ 4,4 bilhões aos atingidos. Depois de tomar conhecimento, por meio do Ministério Público Federal, de que não houve qualquer consulta às vítimas, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) anulou o acordo, o que foi tido como vitória.

A lama que despencou da barragem do Fundão destruiu o povoado de Paracatu de Baixo, a poucos quilômetros de Barra Longa – Foto: Alex Tajra

A camaradagem entre as mineradoras e os governos previa a criação de uma fundação para gerir o dinheiro indenizatório da Samarco. A chamada Fundação Renova, com sede em Belo Horizonte, tem em seu Conselho Curador uma promíscua relação entre público e privado, com empresários que já trabalharam décadas em altos cargos da Vale e da BHP, como Wilson Nélio Bruner, Roberto S. Waack e Galib Chaim.

Naquela reunião na Câmara, procurador Edmundo Dias tomou a palavra e começou a dissertar sobre a decisão. Arrastado, ninguém compreendeu muito o que disse. Thiago Alves, coordenador estadual do MAB, traduziu: “Esse acordo só ia prejudicar mais os atingidos, foi uma vitória essa anulação.”

Depois, as pautas foram colocadas. O alto número de funcionários da Samarco perambulando pela cidade com camionetes cabine dupla era um incômodo geral. Outro tema levantado foi a destruição do Parque de Exposições de Barra Longa. Há meses que caminhões, a mando da Samarco, retiram lama da praça principal da cidade e depositam no que deveria ser um parque municipal – nunca inaugurado e agora transformado em depósito de rejeitos da mineradora.

Algumas famílias vivem na área que fica à beira do rio já destruído pela lama. O Ministério Público de Minas Gerais condenou a atitude da empresa, que agiu sem qualquer autorização ou licença. A resposta da mineradora era de que a lama seria retirada do local em janeiro de 2016. Em agosto, as montanhas de terra contaminada com metais pesados continuam e o controle se perdeu. Tapumes de metal foram colocados pela Samarco, o que gerou reclamações pelo aspecto terrível, e a mineradora se defendeu dizendo que era “um pedido dos moradores”.

Na fileira a frente da minha, Simone e Odete conversavam e gesticulavam, dando palpites em todas as discussões. Estavam possessas com as ligações recebidas da Samarco, que estava tentando realizar um cadastro com os atingidos. Vários questionários já foram feitos com a população de Barra Longa. Os moradores alegam que a empresa usa dessa estratégia para fazer uma triagem e decidir quem é atingido e quem não é. Peneiram as indenizações e, assim, gasta-se menos.

Reclamavam muito do novo questionário, que envolvia mais de 400 perguntas. “Vocês não são obrigados a responder nada”, disse Edmundo Dias. Fato contínuo, perguntou se havia mais demandas.

Ingrid, voluntária de vinte e um anos que foi a Barra Longa dias depois da queda da barragem, pediu para falar a frente de todos. “Queria dizer que nesses últimos tempos, não só eu como todas as mulheres de Barra Longa… nós estamos sofrendo muito com assédios dos funcionários da Samarco. Já fui reclamar na Hexágono (terceirizada da Samarco) e na Samarco. O mais absurdo é que, na Samarco, o cara falou que a culpa era minha, pra eu usar ‘roupas descentes’ e que ‘mulher que quer respeito não usa decote'”. “Na semana passada mesmo”, continuou, “um cara bateu na minha bunda do nada na rua”. Os presentes caíram em uma triste risada, a menina não sabia onde se esconder.

Edmundo e Thiago conversaram com a jovem, que foi do sorriso amarelo ao choro instantaneamente, e encerraram a reunião.

 

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

1 COMENTÁRIO

  1. Uma amiga fez uma reportagem na cidade de Bento Rodrigues e a situação por lá não é nada diferente. Infelizmente, o patrimônio histórico desse país é desrespeitado toda vez que há uma oportunidade. Textaço!

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here