maria terminava seus afazeres em casa, cuidando das plantações e das dezenas de quilos de lenha trazidas pelo marido quando o filho do vizinho, menino franzino e gago, desceu a rua de terra desesperado e bateu em sua porteira de madeira. “B-b-b-b-ento r-r-odrigues! C-c-c-aiu tudo!”. De início a mulher de olhos em tons de azul e verde não acreditou na criança, que levava a fama de ser brincalhona. “Nem levei ele a sério. Ele brinca muito, passa toda a hora aqui fazendo piada”, me disse Maria em uma manhã nublada de agosto, em sua casa pintada de verde.

Maria Machado Costa e seu marido Airton Martin Costa, conhecidos por toda a região como Dorinha e Bilú, demoraram para entender a caçoada do vizinho gago. Poucas horas depois da visita do menino, a luz acabou e doses cavalares de pânico emergiam dos povos, sem saber o que estava acontecendo. Quando viu – e ouviu – o mar de lama descendo o rio Gualaxo do Norte, pouco antes das dez horas da noite, Bilú se desesperou. “É hoje que o mundo vai arrasar”, contou, sorrindo, com a fala mansa.

O casal é produto de família. Como acontece em muitas constituídas nos povoados Brasil afora, Dorinha e Bilú são primos que se apaixonaram. Bilú é original de Pedras, distrito rural muito próximo à Barra Longa. Já Dorinha é de um pequeno sítio chamado Córrego. Estão casados há mais de quarenta anos. Bilú vive na mesma casa há sessenta. Por sorte não a viu sendo levada pelo turbilhão de rejeitos da Samarco.

Alto, negro e magro, aparentando muito menos idade do que tem, Bilú me contava a história da noite da destruição fumando um cigarro de palha grosso, perfeitamente enrolado. Miúda, Dorinha acompanhava tudo do lado dele, revelando os detalhes e aparando as arestas do marido. Os dois brincavam um com o outro como se fossem crianças, rindo e provocando a todo momento. Nem pareciam estar contando como a casa deles quase foi levada embora pelo rio.

No dia da lama, continuou a história Bilú, quando começou a ouvir um barulho incomum do Gualaxo e viu a energia elétrica ir embora, se assustou e começou a preparar um plano de evacuação. A casa dos dois é em um terreno acidentado na beira do rio, em frente a uma estrada de terra. Ele então começou a carregar comida e mantimentos para o alto do morro mais próximo, localizado bem na frente da casa. Voltou e avisou Dorinha, após traçar uma linha branca no chão de terra. “Se a lama passar essa linha, a gente sobe correndo pro alto.”

Não precisaram subir, mas a insegurança tomou seus corpos durante toda a madrugada. Helicópteros da Defesa Civil e do Corpo de Bombeiros sobrevoavam a área a fim de resgatar as pessoas ilhadas pela lama. “Vi as pessoas balançando panos brancos para serem puxadas. Fiquei com muita vergonha, não queria passar por aquilo. Preferi ficar dentro de casa esperando”, contou Dorinha lembrando detalhes da madrugada e sua estranheza perante uma aeronave daquele porte.

No outro dia, ao amanhecer, o casal foi constatar a destruição. “Perdemos tudo. Tudo tudo tudo. Plantávamos milho, feijão, mandioca, batata, quiabo, abobrinha…Não podia mais pescar, não tinha nada mais naquele rio”, disse Bilú. Muitos animais criados pelo casal também morreram soterrados. “Mais ou menos umas 18 galinhas e uns 20 patos”, de acordo com os dois. Passaram nove dias totalmente ilhados, sem luz e vivendo da comida e da água que ainda lhe restavam. As pontes para outras cidades e povoados foram dizimadas pelos resíduos da barragem.

Durante o período enclausurado, sem qualquer forma de comunicação, o casal e os vizinhos da região precisaram de ajuda para a iluminação. O filho de Dorinha e Bilú, morador de Campinas, distrito que fica do outro lado do rio, lançou um pacote com quatro velas e algumas pedras para fazer peso, tentando amenizar a situação. O arremesso do filho foi perfeito, mas o impacto quebrou metade das velas. Dorinha e Bilú ficaram com uma e deram a outra para o vizinho. Os funcionários da Samarco tardaram a chegar e levaram cestas básicas para as famílias. Dorinha, porém, relatou que a bonança não durou muito. “Quando foi janeiro pararam de vir, nunca mais vi eles entregando nada”.

A violência da lama assustou o casal. Todas as pessoas mortas pela queda da barragem do Fundão eram de Bento Rodrigues, primeira cidade atingida pela onda de lama, além dos funcionários da Samarco. Isso não impediu que o rio carregasse partes de corpos das vítimas. Dorinha me contou, gesticulando e apontado para o local, que acharam um braço de uma pessoa num terreno bem próximo à sua casa. São vários relatos dos moradores envolvendo braços, pernas e outros membros dos mortos, relacionados principalmente aos vira-latas da cidade, sempre procurando por comida.

“Foi tudo muito ruim, mas que tem muita gente se aproveitando da situação, ah, isso tem. Gente que nem foi atingida está tentando conseguir as coisas, até mais do que os atingidos de verdade”, contou Dorinha, subindo um pouco o tom. Assim como muitos moradores das cidades atingidas, repete um mantra que divide a opinião das pessoas e enfurece outras, principalmente os ativistas do MAB, Movimento dos Atingidos por Barragens, que brigam para que todas as pessoas sejam reparadas independentemente do quanto foram atingidas. Segundo alguns moradores, a empresa faz uma espécie de campanha implícita para indenizar “apenas os que realmente foram atingidos”.

Isso inclui uma “conscientização” dos moradores de só reivindicarem estritamente o que foi perdido, além de certa criminalização de pessoas que estariam se aproveitando da situação para obterem privilégios da Samarco. Já de saída observei uma quantidade grande de lenha depositada na frente da casa, e questionei Bilú se alguma parte daquilo ainda era resquício de antes da queda da barragem. “Nada. Isso aí peguei outro dia, por isso que to com essas dores nas costas. Antes da lama eu tinha muito mais. Perdi tudo que levei na cacunda”.

 

Alex Tajra é jornalista

Esse texto faz parte da coletânea “Soterrados”, conjunto de reportagens escrito em 2016 sobre os atingidos pela queda da barragem do Fundão, na Zona da Mata de Minas Gerais. 

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