o sol da metade do dia escaldava o asfalto do estacionamento e castigava as latarias. As vagas – ocupadas desde cedo – eram majoritariamente preenchidas por uma gama de viaturas. Logotipos da Polícia Militar, Polícia Federal e Força Nacional eram maioria, seguidos de perto pela Guarda Civil Municipal. O mosaico formado pelas pinturas geométricas nos veículos e as cores vibrantes dos giroflex marcavam o horizonte.

“Porra, morri!” são as primeiras palavras que ouço ao adentrar a LAAD, popularmente conhecida como a Feira das Armas, que aconteceu em abril em São Paulo. Um simulador onde as pessoas podem “testar” o fuzil de assalto IA2 – 7.62 é a primeira atração aos olhos dos visitantes. Quem se arriscava tinha de empunhar o armamento e atirar no momento exato, tudo isso em meio a uma narrativa inóspita que envolve um carro abandonado no meio da estrada. O assassinado virtualmente, homem de corte militar e camiseta com o emblema “Sheriff” às costas, aprovou. “Dá pra sentir bem a arma”, disse aos os amigos que engrossavam a fila.

O IA2 é o primeiro fuzil de assalto produzido inteiramente no Brasil pela IMBEL, estatal fabricante de armas vinculada ao Exército. O estande da empresa era um dos mais concorridos, atraindo desde entusiastas e militares interessados na nova pistola PST380 (negociada por 4 mil reais) até fanfarrões emplacando uma selfie atrás da outra empunhando os fuzis. “Não é assim, tem que mostrar a arma inteira”, dizia um dos fotógrafos ao amigo, que insistia em apontar a arma para a câmera.

Pistolas, revólveres, facas, granadas e rifles acompanhavam a maioria dos policiais ou militares que visitavam a feira, transformando os desarmados em exceção. Quando divulgou as regras do evento, no entanto, o site oficial da LAAD pontuou que entrar armado seria proibido, e a empresa iria disponibilizar um local exclusivo para que os policiais deixassem seus equipamentos. A norma foi apagada da página um dia antes.

O evento é tradicionalmente realizado no Rio de Janeiro. Debutou em São Paulo por conta “da representatividade que o estado tem para os setores envolvidos na feira”, segundo os organizadores. Levantamento feito pela Polícia Federal aponta que São Paulo é a capital da arma no Brasil: são 137.625 registradas no Estado, o equivalente a 21,3% de todas as armas de fogo regulamentadas no País.

Dos mais de cem expositores, um senhor esguio, chacoalhando um tubo colorido, chamava a atenção dos transeuntes. “Esse spray de pimenta é novo, é totalmente não letal”, dizia, passando o tubo às mãos de quem parava. Abaixo de um banner com o slogan da empresa (“Aprimorando a cultura da paz”), um vídeo de treinamento mostrava policiais enfileirados, com os olhos fechados, e outro PM lançando o gás de pimenta em seus olhos. Reprimiam suas caras e bocas e permaneciam imóveis. Ao final, uma mensagem sentenciava: “Atende às doutrinas dos Direitos Humanos”.

Estande da Condor, maior fabricante de armas “não letais” do Brasil. A empresa ficou conhecida por fornecer armas a regimes autoritários no Oriente Médio, como Arábia Saudita. Foto: Alex Tajra

Numa carreta de cachorro-quente decorada com o brasão do Departamento de Investigação sobre Narcóticos, o Denarc, uma fila se formou para uma pequena exposição de drogas. O tradicional prensado brasileiro fazia companhia à capsulas, pinos e papeizinhos com desenhos psicodélicos. Uma seringa e uma pequena porção de uma substância amarronzada, supostamente heroína, também estavam lá.

Enquanto a reportagem visitava o veículo estacionado, uma equipe de televisão de uma emissora cristã entrevistava a policial responsável. Apreendemos tantas toneladas disso, tantas daquilo, temos panfletos educadores, dizia a mulher, com uma pistola .40 pêndula no lado esquerdo da cintura. Pôsteres de um metro e meio de altura indicavam os malefícios das drogas, incluindo as legais, como álcool e tabaco.

“A maconha reduz a produção de espermatozoides e óvulos, aumentando a probabilidade de deformações genéticas. Na mulher, desregula completamente o ciclo menstrual, afetando o metabolismo da ovulação.”, dizia o pôster que tratava da cannabis. “Após algum tempo de uso, a pessoa torna-se agressiva, depressiva, irresponsável e anti-social. Nessa escalada, só há três caminhos: tratamento, cadeia ou cemitério”, finalizava o texto.

Um burburinho começou a se formar ao maior e mais luxuoso estande, da Condor, empresa brasileira conhecida pela exportação de armas “não letais”. Seu cartel de clientes vai das forças de paz da ONU à ditaduras como a Arábia Saudita. O aglomerado era em torno de José Beltrame, ex-secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro e convidado para um debate na Feira das Armas. Ricardo Balestreri, secretário-chefe do gabinete de assuntos estratégicos de Goiás e o diretor geral da Polícia Federal, Renato Borges Dias, completavam a mesa.

As cadeiras dos debatedores estavam organizadas em torno do principal lançamento da Condor para a feira: um lança-granadas veicular. Balestreri abriu as conversas saudando a categoria mais presente. “Queria, antes de tudo, pedir uma salva de palmas aos heróis dessa nação, os policiais, que todos os dias arriscam suas vidas para nos salvar”, disse, seguido de uma saraivada. Uma policial carioca na primeira fileira, emocionada, puxou colegas que estavam próximos. Retirou seu quepe, pressionou-o ao peito e somente depois bateu palmas.

Poucos instantes após o debate Beltrame conversou com Saci sobre a revogação do Estatuto do Desarmamento, em trâmite no Congresso desde 2012 e que facilita o acesso às armas de fogo no Brasil. Não são poucos os políticos que endossam a ideia, incluindo candidatos à presidência da República. Jair Bolsonaro (PSL) encabeça os postulantes que querem mais armas nas mãos das pessoas, seguido por Álvaro Dias (Podemos), Geraldo Alckmin (PSDB) e João Amoêdo (NOVO).

“Na experiência que tenho o sentido é oposto, policiais perdem suas vidas mesmo tendo habilitação e capacidade, e suas armas acabam sendo usadas como espólio. Muita gente acha que portar uma arma de fogo é solução, mas não é”, disse, parecendo prever a discussão em torno da reação de policiais a assaltos que tomou conta do noticiário após o dia das mães deste ano.

No fim da tarde, já com a farda empapada e um desgaste aparente, a policial emocionada com o discurso do secretário de Goiás continuava nos arredores da Condor. Circulava com zelo, as mãos atrás das costas. Num momento de despudor, pegou uma granada de gás lacrimogêneo e analisou friamente. “Essas aqui são novas, né?”

Alex Tajra é jornalista 

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